Apontamentos sobre o inferno
A campeã do Carnaval de São Paulo, a escola de samba Vai-Vai, trouxe para a Avenida o samba-enredo “Capítulo 4, Versículo 3 – da Rua e do Povo, o Hip Hop: um Manifesto Paulistano”. O desfile causou a fúria das polícias por todo o Brasil.
Associações de policiais, do exército, e políticos da direita conservadora bradavam por todos os cantos contra o que consideravam um absurdo: a crítica feita pela escola em uma de suas alas, intitulada “Sobrevivendo no Inferno”.
O samba-enredo em si não é um dos mais críticos; exalta a cultura popular e coloca em evidência artistas que foram marginalizados por darem voz àqueles que são excluídos. Inclusive, o samba-enredo é uma clara referência ao grupo de RAP Racionais, que nos anos 90 lançou o genial disco “Sobrevivendo no
Inferno”, e a música “Capítulo 4, Versículo 3” integra esse disco.
Contudo, a ira dos policiais é dirigida especificamente à ala que os retrata como demônios. Armados, com cacetetes e escudos, são representados exatamente como a periferia vê as forças policiais: cruéis, autoritários e truculentos.
O que mais chamou a atenção é que todas as associações e setores que se manifestaram contra em nenhum momento se questionaram por que o povo pobre e da periferia os vê dessa maneira. A resposta para esse questionamento é profunda e complexa e faz parte de algo maior.
O que vivemos cotidianamente nas periferias foi construído metodicamente para o controle social da classe trabalhadora. O Estado moderno é um instrumento das elites. Quem não considera essa premissa, ou é ingênuo ou maldoso e tem interesse no entendimento contrário.
Nesse sentido, a forma como o Estado lida com a classe trabalhadora e com a periferia está
intrinsecamente e diretamente ligada aos interesses da elite.
A herança escravocrata da elite brasileira explica em parte a visão dela sobre o povo pobre. Sendo assim, ela encontrou em um sistema bem formulado o método de controlar socialmente a periferia, transformando-a em um lugar onde a visão hegemônica é de que ali residem potenciais “bandidos e
marginalizados”.
Essa visão tem raízes desde o início do século XX. Uma instituição chamada War College, nos EUA, começou a pensar a segurança nacional baseada na mistura de política e guerra. Neste sentido, dentro do pensamento militar, definir o inimigo é parte fundamental para estabelecer a estratégia e a
tática a serem adotadas.
Naquela época, o inimigo eram os comunistas. Para combatê-los, o governo norte-americano criou diversas instituições e métodos. Dois exemplos são a remodelação do Federal Bureau of Investigation (FBI), que passou a levar esse nome justamente para combater o comunismo, e o uso do cinema como
arma de propaganda contra a “ameaça comunista”.
Essa ideologia de segurança nacional chegou ao Brasil via construção da Escola Nacional de Guerra (ESG), cujo modelo de estudo e ação é inspirado no que eles chamam de irmã, a War College. Durante a Ditadura Militar (1964-1985), um dos principais arquitetos e mentores foi o General Golbery do Couto
e Silva, um dos principais intelectuais da ESG.
A ideologia de segurança nacional, inicialmente no Brasil, serviu para combater aqueles que lutavam por democracia. No entanto, à medida que a guerrilha ia sendo derrotada, um novo inimigo interno era colocado em evidência: o povo pobre da periferia.
No livro “Geopolítica do Brasil”, Golbery detalha o que ele chama de estratégia psicossocial, que basicamente se resume em eleger um inimigo, usar a educação para formar contra esse inimigo e treinar os agentes de estado, as forças policiais e o exército para combater esse inimigo eleito.
Com o fim da ditadura, essa velha estrutura de construção social deixada pelos militares enraizou-se no estado brasileiro, contaminando as forças policiais, a educação e a justiça. O Estado brasileiro trata de forma paternalista quem mora na periferia ou de forma preconceituosa, transformando todos em
suspeitos ou bandidos.
Artistas da periferia são tratados como criminosos, e a cultura popular como crime. Basta observar a ação das polícias em festas em locais periféricos e em locais de elite para perceber a diferença de tratamento. Isso sem contar o tratamento reservado que a classe média pratica com a cultura popular e o povo
da periferia.
O que a Vai-Vai fez foi apenas denunciar essa criminalização e a ação do Estado contra a periferia. Hipocritamente, as associações de policiais utilizam do mesmo expediente de demonizar a periferia para treinar seus policiais. Agora, que foi usado para denunciar ações muitas vezes criminosas nas periferias,
pedem a criminalização e a punição da Vai-Vai.
O momento é de defender a cultura popular e, nesse caso, a Vai-Vai. Não é possível uma sociedade verdadeiramente democrática onde a maioria da classe trabalhadora seja tratada como bandida.