O país dos mudos

Em minhas memórias, eu explico como parei aqui, nesse lugar solitário, pestilento, insalubre e que será meu túmulo.
Fui um ditador e minha palavra era uma ordem. O povo era meu! Essa terra era minha!
Havia um dia em comemoração a minha pessoa. Festa em todo país. E foi no meu dia, o dia da minha vitória, que decidi dar uma ordem suprema, uma ordem gritada a todos pulmões para que todo cidadão ouvisse e obedecesse.
Da janela do palácio de governo, diante de uma multidão segurando meu retrato, o deus que eles adoram, gritei:
_ Que todos os idiotas desse mundo se calem!
Olhei para meu assessor direto, que fazia uma expressão de horror e seu único som foi um sibilo que saiu raspando pela garganta até sumir completamente. Nunca tive dúvidas de que ele era um idiota.
Para minha surpresa, a ordem foram minhas últimas palavras. Senti minha garganta secar, algo se atrofiava dentro de mim, como se uma bexiga murchasse.
Como ditador e não poderia deixar transparecer minhas fraquezas.
_ Gasp! – cuspi uma saliva branca e pastosa.
Com o palácio em silêncio, ouvi botas em passos apressados. Era o General, comandante das Forças Armadas, que grunhiu apontando para a própria boca. Ele também era um idiota.
Coloquei as mãos para trás, empinei o queixo e andei decididamente pelos corredores seguido por uma silenciosa comitiva palaciana.
Lembro muito bem que só pensava em impedir que eles soubessem que eu também estava mudo. Na dúvida eles acreditariam. Crer no seu ditador, acreditar que eu não falava em solidariedade a eles e que era um homem bondoso seria a melhor solução para eles e para mim.
Nas ruas ouvi carros, buzinas, mas nenhuma voz. Na verdade, estranho se ouvisse alguma voz, o trânsito é a morada do trânsito.
Na praça, um mendigo não falava, nem precisava, bastou esticar o braço com a mão aberta para que eu mandasse meu assessor depositar uma moeda.
Um mímico atuava indiferente a sua própria idiotice.
Nas mesas lotadas de jogadores de cartas, a jogada trucada era um rosto feroz de intimidação.
Visitei um hospital, e não havia gritos, lamúrias ou choro. Não havia voz e a dor era apenas sentida, não expressada. Médicos, enfermeiros e doentes unidos num só mal, o mal que eu criei.
Apesar de tudo, eu me sentia poderoso. Um ditador que calou os idiotas do próprio país. Onipotente, onipresente e onisciente, é isso que o povo achava que eu era.
Na universidade, um lugar comumente hostil a minha pessoa, cheguei numa sala soturna, e vi professores olhando para suas próprias sombras nas paredes, buscando soluções utópicas para problemas reais, mudos e sem esperança.
Na verdade, regozijei daquela cena. Com tantos idiotas, mais me consolido pela força e manipulação.
Na academia de letras e artes, os poetas, os escritores, os cronistas e os intelectuais escreviam ferozmente, mas nada tinham a dizer, a não ser sentenças vazias. Não havia necessidade de censurá-los.
Ninguém se importava com eles, a não ser eles mesmos, e isso os tornava menos perigosos do que eles imaginavam ser. Lembro que me mandaram embora com um gesto abrupto. Eu saí sem olhar para trás, mas me senti ultrajado.
Era um país de idiotas, governado por um idiota. É isso! Eles não sabiam da minha mudez, fingirei até o fim. Muitos desconfiaram que eu estava mudo, um cidadão ousou apontar para mim e sugeriu que eu não falava. Nunca mais foi visto.
Sob o jugo da minha arma, ninguém tinha coragem.
Algumas semanas depois da ordem, em comitiva, seguia pela rua quando me chamou a atenção dentro de um beco um rapaz, ele parecia ter uma aura. Bati no banco e o motorista parou.
Desci com dois soldados. Ele viu e correu. Apontei e os guardas saíram em perseguição. Capturaram-no.
O rapaz estava algemado e de joelhos, apontei para o meu pescoço e sua boca, ele entendeu o questionamento.
_ Sim! Eu falo.
Os guardas se entreolharam e eu estava desesperado. O rapaz não era um idiota, ao contrário de mim, ao contrário de todos nós.
Fiz gestos sugerindo que ele não respeitava o mal que o país vivia, não era patriota e nem respeitava os ideais do partido.
_ Você quer saber se eu te apoio ou apoiei? – o rapaz disse e eu gesticulei que sim.
_ Se já apoiei um dia, pouco importa. Hoje não, és um caudilho falido.
Usei o indicador em um movimento da esquerda para a direita no pescoço. Mandei matá-lo. Ele representava a maior ameaça ao meu comando supremo. Até hoje suas palavras não me saem da memória:
_ A mudez não é uma doença. Ela é um estado mórbido de quem não consegue enxergar além das próprias convicções, a mudez surge onde não há terreno fértil para o nascimento de flores.
Um dos seguranças, descansou o rifle e, para minha surpresa murmurou:
_ Entendi! Nem tudo é o que parece.
_ A cura é ver as coisas com bom humor e questionar verdades absolutas. – o outro segurança disse com calma.
Senti meus olhos fora das órbitas. Eles estavam curados, ou talvez nunca estiveram doentes.
E eu, sem capacidade de falar, impor minhas convicções e agir pela força, acabei preso. Preso dentro de mim mesmo. Cárcere onde vivo há tantos anos sem deixar de ser um idiota.