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Franca 200 anos e os sonhos acadêmicos

Por Marley Morais

Muito dos meus sonhos juvenis, tenho realizado na atualidade, entre eles o de aproveitar este momento de férias para escrever a minha tese de doutoramento do Programa de pós-graduação em Serviço Social da Unesp/Franca, pesquisa  que tem como título “PEGADAS DA SOBREVIVÊNCIA, DA ESCRAVIDÃO À LIBERDADE: ascensão socioeconômica de famílias negras francanas.” Poder realizar esta pesquisa e entregar o resultado nos 200 anos de Franca é dar voz a nossa população negra francana, presente neste município desde os seus primórdios como escravizados, e hoje em sua maioria vivendo nas periferias, mas sempre presente na construção da cidade, seja na economia, cultura, religiosidade, etc. Resgatar a história do povo preto com nossas experiências, vivencias, identidades, sofrimento e conquista é resistência e sobrevivência, é fazer parte desta sociedade e saber que nossa querida cidade de Franca não foi construída apenas por pessoas brancas, italianos, espanhóis, portugueses, mas também por negros e nativos.

Isto posto com certeza causa uma certa estranheza, iniciar o texto com fatos recentes, então explico, sou professora de história, e atualmente ministro aula em um curso de pedagogia presencial na Faculdade Metropolitana de Franca/FAMEF. Para nós historiadores muitas vezes fazemos o caminho inverso, é bem interessante e facilita a compreensão, iniciar um tema com o momento atual para voltarmos ao passado e identificarmos a influência da ancestralidade em nossas relações humanas, conquistas e desafios e presentes.

Estar feliz por ter este momento para ler e escrever, remete quando fiz a primeira graduação em história na Unesp/Franca, e trabalhando 48 horas semanais em uma fabrica de calçados, meu maior desejo era ter tempo para os estudos e realização das atividades acadêmicas.

Aos 17 anos terminei o ensino médio (na época denominado colegial), eu já trabalhava e estudava a noite desde os 14 anos de idade, também já tinha uma grande paixão pela história. Meus estudos sempre em escolas públicas, realizei todo ensino fundamental anos finais e ensino médio na E.E Dr. João Marciano, onde encontrei grandes mestres. Foi com a professora Rose Ferro, que minha fascinação pela história adquiriu significado, e com o Sr. Carlos de Assunção meu querido professor de francês que aprendi a sonhar, que através do conhecimento eu poderia fazer muito pela minha família e pelo nosso povo preto, ele reafirmou o que minha mãe sempre me dizia —filha o que ninguém tira de nós  é o conhecimento, somos humildes e a maneira de vencer a pobreza é através dos estudos. A leitura sempre me encantou, foi a maneira que encontrei para conhecer o mundo, já que eu não tinha condições financeiras pra viajar. E na década de 80 do século passado o telefone celular e internet não existia nem nos meus pensamentos mais progressistas, sendo assim eu pesquisava nos livros existentes na biblioteca e me deliciava lendo os grandes clássicos da literatura, foi este gosto pela leitura que levou a dona Jacira bibliotecária me apelidar de ratinha da biblioteca.

Em 1982 prestei vestibular para o curso de História na Unesp e fiquei na maior ansiedade esperando o resultado dos aprovados que saia no jornal a Folha de São Paulo, nesta época eu trabalhava no Calçados Sândalo e pedi para um amigo comprar o jornal, quando vi meu nome na lista dos aprovados, chorei muito de alegria, pois sabia que era minha única chance de fazer uma faculdade, pois era e continua sendo a única universidade pública em Franca, ou seja, muito difícil de entrar. Ainda hoje me emociono ao relembrar este dia, meu nome no jornal e que pra mim era uma grande conquista, e não estava nas páginas policiais, pois neste período final de tempos sombrios da Ditadura Militar, ser mulher, negra e periférica poderia ser motivação para perseguição policial.

Isto posto iniciei a faculdade, única estudante negra, em uma sala onde a maioria não trabalhava, isto significava que para dar conta e não ficar DP, dependência em nenhuma disciplina, foi necessário atravessar noites estudando e não ter mais finais de semana para outra coisa a não ser dedicar aos compromissos acadêmicos. Agora ficou fácil compreender o porque da minha alegria em ter dois meses de férias para escrever a minha tese.

Aos 22 anos, último ano de faculdade, eu estava casada já  tinha minha primeira filha e ministrava aulas, por coincidência na E.E Dr. João Marciano, de onde eu havia saído apenas há quatro anos, meus professores/as agora companheiros/as de trabalho. E foi nas trocas com meus pares, na relação de ensinar e aprender com meus estudantes que a docência me abraçou e amo o que faço. É um grande prazer encontrar ex. alunos/as e me dizerem, — professora fiz história, sou professor/a pelo seu exemplo, por tudo que aprendi com você, e foi este amor e a necessidade de fazer o melhor que me levou a fazer Pedagogia na Universidade Federal de São Carlos UFSCar e Filosofia na Universidade Federal de São João d´Rey.

O tempo passou e o meu ser unespiana, me trouxe de volta para universidade, agora como pesquisadora do curso de pós-graduação em Planejamentos e Análise de Políticas Públicas PAPP, curso interdisciplinar em que minha dissertação de mestrado foi sobre a implementação da lei 10.639/03 em escolas públicas da Diretória de Ensino de Franca. Por ser um curso profissional, é necessário apresentar um projeto de intervenção, e com os resultados da pesquisa, detectamos que o principal entrave para se trabalhar temas sobre África, seu povo e a  cultura afro-brasileira, estava principalmente na falta de conhecimento e insegurança dos /as docentes de trabalhar estes conteúdos, então elaboramos um projeto de formação continuada para professores/as e gestores da rede pública estadual.

Foi através deste meu projeto elaborado junto a PAPP- Unesp/Franca, que conheci o Grupo Mulheres do Brasil/ Franca, grupo este formado por mulheres que de forma voluntária trabalha em várias frentes sociais e tem como um dos seus princípios não reinventar a roda. Com base neste princípio, em 2017 fui convidada pelo comitê Igualdade Racial a falar sobre este projeto, sendo imediatamente abraçado por estas mulheres do Igualdade, que hoje me inspiram e fortalece.  Em parceria com a Diretoria de Ensino de Franca e a Unesp/Franca, em 2018 realizamos a primeira edição do curso de formação de professores/as e gestores da rede pública do estado de SP, com a participação de estudantes da Unesp, e com apoio do Comdecon também a participação da comunidade negra. Neste ano de 2024, em que Franca completa 200 anos de emancipação política o nosso curso intitulado “História e cultura Africana e Afro-Brasileira na Perspectiva da Lei 10.639/03” , completou a sua 5ª edição e já passaram pela formação mais de 300 pessoas, que são multiplicadores deste importante e necessário  conhecimento, para que possamos construir uma educação verdadeiramente antirracista, menos violenta e mais igualitária em direitos e oportunidades entre negros/as e não negros/as.

Parabéns Franca pelos 200 anos de muita história, construída por muitos povos, muitas mãos e grandes intelectuais de origem africana, indígena e europeia.

Marley Morais é professora no curso de Pedagogia da Faculdade Metropolitana de Franca /FAMEF ; historiadora, mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas e doutoranda no Programa de Pós-graduação em Serviço Social – Unesp/Franca. É integrante do Grupo Mulheres do Brasil, no qual faz parte do Igualdade Racial

Esse texto faz parte da série “O que elas têm a dizer”, idealizado pela colaboradora Soraia Veloso, em que escritoras de Franca homenageiam a cidade pelos 200 anos, comemorados no dia 28 de novembro de 2024. Publicamos um texto por dia ao longo de mais de 50 dias, escritos por mulheres.

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