Ciscando Aventuras

FILME: Elis
(filme brasileiro, biográfico, direção: Hugo Prata, 2016, 110 minutos).

O filme retrata a vida intensa da consagrada cantora Elis Regina, desde quando sua carreira se iniciou e, aos 18 anos, saindo de Porto Alegre e se mudando para o Rio de Janeiro, até o auge de seu sucesso. Sucesso tal, que conquistou uma imponente carreira internacional. A sua grandiosa e meteórica ascensão na música, assim como o peso da fama, atribuídos a uma vida pessoal conturbada, a perseguiram até sua fatídica morte, ocorrida em São Paulo, em 19 de janeiro de 1982, em decorrência de uma overdose de cocaína e bebida alcoólica.
O ator Caco Ciocler teve aulas de piano para interpretar César Camargo Mariano, além de ler a autobiografia do pianista. A atriz Andreia Horta, que interpretou Elis, fez um belo trabalho, convincente: visitou os locais onde Elis Regina viveu, inclusive a casa em Porto Alegre. Horta chegou a cantar nas filmagens, mas para o filme usaram as gravações originais de Elis. Lúcio Mauro Filho teve dicas do próprio Luiz Carlos Miele, que chegou a visitar o set de filmagens. Miele faleceu antes da estreia do filme.
Uma gafe no filme foi a cena em que Elis diz a Ronaldo Bôscoli que quer o divórcio, mas o divórcio no Brasil só surgiu em 1977, anos após eles se separarem. Na época da separação, ainda vigoravam as regras do desquite. Ainda assim, quando Elis é chamada para prestar esclarecimentos aos militares é chamada de desquitada, na época uma forma de ofensa velada.
POR QUE GOSTEI: Como Elis é uma “artista consagrada”, o filme não teve uma acolhida unânime por parte da crítica e de quem acompanhou a sua carreira. É sempre complexo retratar uma personalidade, ainda mais uma artista da magnitude de Elis Regina, uma mulher que lutou para garantir um espaço em uma sociedade patriarcal e preconceituosa, com talento e muita confiança nela mesma. Esta autoconfiança no próprio e acertado talento lhe rendeu o apelido de “pimentinha”, por dizer o que pensava, e não se curvar ao clichê de “mulher submissa e dócil”. Elis assumia suas opiniões e manteve autonomia de pensamento, questionando o mercado fonográfico, e o machismo dominante então. A arte nem sempre acompanha a vida, e vice-versa. Mas para gerações que não conheceram a artista em vida e nem o contexto em que vivia Elis, o filme vale como aperitivo para mergulhos melhores e maiores na história de nossos grandes talentos brasileiros e nossa triste história. Mais do que nunca, precisamos conhecer nossas origens, se quisermos programar nosso futuro.
LIVRO: A ridícula ideia de nunca mais te ver
(Rose Monteiro, Ed. Todavia, 2019, 208 páginas).

Quando Rosa Montero leu o impressionante diário (incluído como apêndice neste livro) que Marie Curie escreveu após a morte de seu marido, ela sentiu que a história dessa mulher fascinante guardava uma triste sintonia com a sua própria: Pablo Lizcano, seu companheiro durante 21 anos, morrera havia pouco, depois de enfrentar um câncer. As consequências dessa perda geraram este livro vertiginoso e tocante a respeito da morte, mas sobretudo dos laços que nos unem ao extremo da vida.
POR QUE GOSTEI: primeiramente, achei a ideia da editora de Rose Monteiro genial. Como editores são importantes para os escritores! Editores se tornam parceiros na criação de um espaço e tempo pela presença e companhia na leitura do autor, como faíscas para sua imaginação, fatores de reverência e afinidade eletiva. O editor que ama ler sabe como estimular e promover a criatividade de talentos nem sempre reconhecidos pela época em que vivem. Os editores não podem ter um olho apenas comercial. Infelizmente, são raros os que mantêm a competência de reconhecer no volume de escritos que atendem às modas, efêmeras e fúteis, o ouro da sabedoria atemporal.
Eu li dois livros de Rose Montero – A louca da casa – um livro incrível sobre a imaginação. A “louca da casa”, expressão de Santa Tereza d´Ávila, é ela, a imaginação. Rose Montero cria e mostra como cria. A imaginação é fronteira entre razão e desrazão e abre caminhos para novas formas de experiência, derrubando cercas – preconceitos, crenças, equívocos de toda ordem – que a atitude racional (paradoxal, não?) pode construir, criando falsas ideias, ideologias, e justificativas inumanas, desumanas, irracionais (surpreendemente!). A imaginação, com sua verve descomprometida com juízos pré-estabelecidos, com normas da cultura nem sempre sadias, liberta aspectos adormecidos em alguma esquina da alma atemporal e amoral. A alma humana pode aprender a ser ética, se não for domesticada em meio bruto, em meio à barbárie.
O outro livro de Montero – Paixões – é sobre casais célebres e suas vidas, algumas trágicas e outras felizes (Liz Taylor-R.Burton; Evita-Perón; Rimbaud-Verlaine; Marco Antonio-Cleópatra; John Lennon-Yoko, e outros muitos). Mostra as cores fortes da paixão e as tonalidades complexas e sutis do amor.
Este livro – A ridícula ideia… – traz entretecidas as histórias de seu luto a par da história, não somente do luto de Marie Curie, mas da intrigante personalidade da cientista. Difícil, árdua trajetória de uma mulher em meio à Ciência dominada por homens. Também fala de uma parceria da amizade do casal Curie, o amor, o companheirismo de almas afins, que compartilham um ideal comum. É um livro e tanto. Me fez muito bem lê-lo e reconhecer a pena de Montero: capaz de ver, com delicadeza de trato, o seu próprio avesso no direito da literatura. O Literário no avesso de uma vida. Uma proeza difícil de realizar.