Ciscando Aventuras

FILME – A BALEIA
(filme americano, direção de Darren Aronofsky, 2022, 117 minutos).

O longa-metragem nos confronta com a história de Charlie (Brendan Fraser), um recluso professor de inglês de meia-idade que pesa 272 kg. Ele vive preso dentro de seu apartamento, tendo como visita apenas a sua colega enfermeira Liz (Hong Chau), que o ajuda constantemente com algumas de suas necessidades. Charlie sofre de obesidade mórbida e tenta a qualquer custo se reconciliar com sua filha adolescente de 17 anos, Ellie (Sadie Sink). Baseado no romance The Whale, de Samuel Hunter.
POR QUE GOSTEI: É estranho dizer “gostei” quando se trata de um filme que nos angustia, como curtir no facebook quando alguém posta que está doente ou perdeu alguém amado. E é um filme que provocou controvérsias.
No entanto, a vida não é fácil para ninguém. Quando damos uma figuração para uma situação que conhecemos teoricamente, ou conhecemos um personagem que nos faz sentir seu drama íntimo, e atravessamos – por quase duas horas – um enredo que desvela complexidades doloridas, é possível alargar nossa alma e refinar nossa percepção. Observamos um crescimento psíquico, pela conexão emocional com a história, com o personagem, que vale a pena o sofrimento experenciado. É ficção, mas tão verossímil! Mesmo que, como acontece com A Baleia, desperte controvertidas ideias. Estamos em contato com situações que podem nos tocar inconscientemente em aspectos que não gostamos de sentir-pensar.
Este ator-protagonista, Brendan Fraser, mereceu o Oscar 2022 de Melhor Ator; ele sentiu o que é sustentar a “armadura corporal” que o obeso carrega, talvez como punição, como representação de uma culpa, por um luto de perdas, algumas irreversíveis, outras que o atormentam, pelas suas escolhas afetivas. O obeso mórbido tem muito a carregar internamente, e seu distúrbio pode manifestar um extremado desejo de morrer.
Ao alargar a capacidade para sofrer qualquer sentimento temos a chance de intensificar, por outro lado, sentimentos prazerosos e felizes. Como um pintor que tem uma palheta pequena de cores e se descobre acessando um leque quase infinito de cores que dantes não podia usar. O filme mostra uma história muito triste, trágica, mas que nos enternece – um ser humano e sua dor extrema. Como nos redimir de uma culpa que nos devora a ponto de impedir-nos de viver?
Deparei-me com uma crítica de que o filme é claustrofóbico – e poderia ser de outra forma, se é a obesidade a prisão vivida no próprio corpo de Charlie? Quantas pessoas se encerram assim, em prisões invisíveis aos olhos nus de compreensão e empatia, de compaixão?
Escolheram um ator, para o papel de Charlie, que tem um olhar cativante de humana solidão, de ternura imensa… este filme é para solitárias almas que não conseguem se libertar dos grilhões pesados que carregam em suas trajetórias de vida, à revelia; que os condenam a um terrorífico isolamento.
LIVRO: Homens imprudentemente poéticos
(Valter Hugo Mãe, 2016, 192 páginas).

Agraciado com os prêmios José Saramago (2007), Grande Prêmio Portugal Telecom de melhor romance e livro do ano (2012), o escritor recebeu elogios de José Saramago, ganhador do único prêmio Nobel da língua portuguesa, que o definiu como um “tsunami literário”, no livro O remorso de Baltazar Serapião, um dos livros que li em duas etapas, por não conseguir continuar a leitura, tão difícil acompanhar o autor em sua crítica ao machismo cruel, violento contra a mulher.
Em Homens imprudentemente poéticos, Valter Hugo Mãe apresenta os personagens Itaro, o artesão, e Saburo, o oleiro, vizinhos e inimigos num Japão do século 19, onde a morte e a ausência de amor servem de pano de fundo para a linguagem lírica do autor que, com sua linguagem única, tornou-se a grande voz da literatura portuguesa contemporânea.
O artesão de leques Itaro é “um cúmplice da natureza, um certo intérprete” que expressa toda beleza da fauna e da flora na meticulosidade de suas pinturas. Paradoxalmente a essa sensibilidade, Itaro é um homem abatido pela miséria, não apenas de dinheiro, mas principalmente no evitar as emoções. Ele tem o dom de ver o futuro no instante exato da morte dos animais. Suas visões sempre trazem destinos cruéis e ele vive encurralado entre o ímpeto da curiosidade e, portanto, da vontade de matar, e o assombro da descoberta.
O oleiro Saburo, vizinho de Itaro, é o oposto do artesão. Um poço de amor, pelo menos até a morte da esposa Fuyu, atacada por uma fera misteriosa vinda da montanha. A tragédia já havia sido anunciada por Itaro e, a despeito das tentativas de Saburo para proteger a amada, o presságio se concretiza e endurece, aos poucos, a alma do oleiro.
POR QUE GOSTEI: Devo dizer que um título de um livro me conquista à primeira vista, depois a capa, se criativa. Mergulhei nestes dois personagens que foram me conduzindo a uma mescla de violência e de profunda delicadeza de sentidos e de sentimentos. Soube melhor sobre este lugar de suicidas que tem no Japão, Monte Fuji, no Mar das árvores.
Mãe situa seus personagens em uma aldeia no sopé do monte Fuji, próximo da região conhecida como a Floresta dos Suicidas, lugar que visitou enquanto escrevia a história. Os vizinhos, o artesão Itaro, e o oleiro Saburo são inimigos, mas devido às circunstâncias da vida, relativizam a discórdia e se opõem com cordialidade. De acordo com o escritor e jornalista Laurentino Gomes no prefácio do livro, “o mesmo olhar microscópico sobre a aldeia japonesa confere ao livro o tom de obra universal, de conteúdo profundamente humano, cujo enredo diz respeito a cada uma dos sete bilhões de pessoas que hoje habitam o planeta”.
Aokigahara Jukai (O Mar das Árvores) é a zona do Japão onde ocorrem mais suicídios, diz-se que os espíritos dos suicidas para sempre vagueiam na área, a quantidade de corpos descobertos, em média trinta por ano, levaram as autoridades a colocar sinais proibindo o suicídio na floresta.
Valter Hugo Mãe nos coloca em contato com a cultura e sua forma de encarar não somente o suicídio, mas como que cria uma utopia encarnada em Saburo, que constrói um jardim para evitar a selvageria prevista por Itaro, da morte da sua muito amada mulher. Já Itaro em suas visões – intuições? – sobre a violência, não suporta entrar em contato com suas emoções. O autor diz que pensou em desenvolver, e o faz com muita poesia, em uma moralidade. É livro para se ler muitas vezes.
Mãe exala sabedoria na sua expressão literária. Um psicanalista italiano escreveu um livro – “Viver as emoções, evitar as emoções”, e evidencia a dinâmica entre Itaro (o que evita emoções) e Saburo (o que vive as emoções). Forças titânicas habitam cada um de nós, entre viver e evitar, entre ser capaz de fazer um luto, guardando afetos encarnados em nós, e o recusar o luto, evitando, recusando, odiando a realidade, não somente externa, mas também psíquica, quando ela não nos satisfaz, nos contraria.
Os dois personagens acabam convivendo em cordialidade, e este é um esforço civilizatório necessário. Em tempos que nossos noticiários nos colocam, em tempo real, frente à barbárie, este livro se faz imprescindível.