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“A vida sempre é inédita. Assim também o trabalho analítico. Inédito”

A Folha de Franca entrevista hoje Heloisa Villela Bittar Gimenes, psicóloga formada em 1995 na UNIFRAN, pós graduada em Psicodinâmica Familiar e Psicanálise Teoria e Prática: Uma visão contemporânea, na mesma universidade e atua na área clínica. Tem grande sensibilidade literária e, por muito tempo, colaborou com excelentes textos de reflexões e frases lapidares junto ao Caderno de Domingo, posteriormente Nossas Letras, do Jornal Comércio da Franca. Foi proprietária de escola, onde atuou na coordenadoria pedagógica.

Na entrevista de hoje ela conta sobre o seu percurso, que se delineia também pela travessia da contradição. “Com a Psicanálise, sabemos que a “negação” é uma forma de “afirmar” pelo contrário.  Na graduação, eu não me atraía a área clínica, muito menos Psicanálise. Pensava em trabalhar em empresa, escola, ou ainda em outros nichos. Ao acaso, escolhi um analista lacaniano (para análise pessoal) e fui fisgada pelo desejo em saber mais sobre este universo tão vasto e desafiador que é o inconsciente e suas “pegadas”.  Chegava à análise com algumas perguntas e saía com outras tantas, nada a ver com as da chegada. Sempre ampliava minhas considerações e elaborações.

A análise pessoal foi criando em mim desejos, autonomia e implicações. Me despedi da Escola Lápis de Cor com a oportunidade de substituir uma amiga psicóloga que atuava na Prefeitura da cidade de Restinga, em sua licença maternidade. Daí em diante, assumi com coragem a clínica onde estou até hoje ( há 18 anos). Digo coragem, pois receber um paciente e pacientemente escutá-lo , desprovida da suas próprias crenças,  construindo junto com ele o que é de mais intimo e por isso estranho, é sim um ato de coragem.  Nunca sabemos por onde vamos percorrer. Por isso mesmo desafiador”, explica.

Em seu percurso, diga-se, a profissional colaborou para a instalação do Conselho Tutelar em Restinga (SP).
Leia o que Heloísa tem a dizer sobre a responsabilidade analítica, orientação teórica, sobre gostar da vida, sobre o luto, sobre compor-se novamente após as perdas. Temáticas necessárias e muito sensíveis, sobretudo nesse momento. Heloísa Bittar tem muito a dizer.

Folha de Franca – Fale sobre o seu percurso acadêmico, pessoal e profissional.

Heloisa Villela Bittar- Logo após a graduação, trabalhei como Psicóloga Escolar na Escola de Educação Infantil Lápis de Cor, por um ano. Depois, comprei a mesma e por mais cinco anos me dediquei a área de Educação Infantil, como coordenadora pedagógica.
Antes da Psicologia, fiz um ano de Ciências Contábeis. Meu pai sempre fez campanha para que “…eu soubesse mexer com papéis contábeis” (dito dele).  Tive a sorte de trabalhar em um escritório de Contabilidade justamente na época do Imposto de Renda. Uma loucura. Ali tive a certeza que este mundo contábil não me pertencia. Desisti da faculdade sob fortes protestos dele. Influenciada por uma prima amada que já cursava psicologia, me arrisquei. Me apaixonei desde a entrada por este universo Psi.
A Psicanálise é uma formação contínua, existe um início e o “sempre”, ou seja, sempre estudando, atendendo, fazendo supervisão e análise. Aquilo que oferecemos ao paciente, de alguma maneira é também o que experimentamos.  O Inconsciente não tem tempo, ele é; assim também a trajetória do analista, sempre é… ativa.
Como gosto da Psicanálise Lacaniana (corrente inaugurada pelo psiquiatra francês Jacques Lacan) fui para Ribeirão Preto participar de grupos, núcleos de estudos. Há 16 anos, participo do Clin-A (Centro Lacaniano de Investigação da Ansiedade) núcleo de Ribeirão Preto, onde seus membros estão referenciados à Escola Brasileira de Psicanálise.
Através do estudo de Freud e Lacan, fui apresentada para a Filosofia, para a Matemática e outras formas de pensar o mundo, de estar nele.

Folha de Franca – Fale sobre ‘escrever’ (quando começou, o que lhe traz etc.)

Heloisa Villela Bittar- Paulo Gimenes, meu marido, é compositor e poeta. Curioso com o mundo das letras e das músicas, sempre compartilhou comigo trechos de músicas e reflexões. Se expressou e se expressa muito bem no universo das palavras; desta forma, um incentivador de minhas escritas. No início, meu leitor e revisor de textos. Eu precisava escrever para ele ler em voz alta com todas as entonações …uma delícia! Sem dúvida.
Com o passar do tempo, fui me arriscando a escrever sozinha. Depois a escrita foi se tornando uma expressão de vida. Segundo Saramago: escrevemos porque não queremos morrer.

Folha de Franca – Discorra sobre como a sua experiência com o luto lhe reconstituiu? O que vc diria para quem está vivendo o luto?

Heloisa Villela Bittar Gimenes – Passei por uma perda difícil. Perdi uma filha e precisei reinventar a vida. Não se recompõe quem perde um filho; na realidade se compõe novamente. Neste caso, é viver o “para sempre sem” na carne. É aprender a viver respirando pela metade o resto da vida. Não há para quem reclamar, não tem jeito de não sofrer e nem pular os dias. O luto vive-se lutando. A escrita neste processo foi reparadora. A elaboração vinha com as palavras. Escrever era alinhavar o ontem nunca mais vivido com as possibilidades do amanhã, até então insonhável. Foi fundamental. Mas posso afirmar que encontrei saídas. Depois de um bom tempo de luta, voltei a sorrir.
Se a profissão ajudou ? A profissão não. A minha análise pessoal sim. Contar com o analista foi fundamental para não querer morar no inferno. Pude ir reencontrando motivos no amor para seguir em frente.  É assim até hoje. Amo o pacote da vida com tudo e todos que o vêm dentro.
Minha escuta é sim mais amorosa depois do baque. Ampliei os horizontes dos afetos depois de tudo. Penso na teoria que me orienta nos atendimentos, mas penso também na minha própria trajetória que me autoriza a seguir junto com o paciente para outras fronteiras. A vida sempre é inédita. Assim também o trabalho analítico. Inédito.
Talvez meu lado mais revolucionário é associar a Psicanálise com um sorriso. Explico-me:  revolucionário, pois o analista deve estar na escuta, fora de cena. Eu estou na escuta e dentro da cena. Não sei ser de outra forma. Vou junto e não me importo de me presentificar. Se isso não é Psicanálise, sou também psicóloga…então…posso.

Folha de Franca – O que você observa, a partir da clínica, em relação ao sofrimento psíquico nos últimos anos?

Heloisa Villela Bittar Gimenes – Vejo o “excesso” chegar no consultório em todas as suas variações.  Abriram-se múltiplas possibilidades de escolhas profissional, sexual, amorosa etc. e com isso a angústia também proliferou. Escolher tudo é entrar no vazio, mas, “para tudo existe o Mastercard, não é?” Nada parece ser o suficiente e bom. Tem sempre mais e mais.  Estar bem e “feliz” tornou-se uma obrigação imposta, como se pudéssemos negar nossa humanidade, à qual, em sua origem é faltante. As mídias sociais são excelentes, mas também trazem estragos. Sim, pois estamos sem intervalos. Nos conectamos sem pausas e nos escravizamos nos Outros oferecidos pela ficção da imagem do Facebook, Instagram etc. Na realidade, nos escravizamos em querer pertencer a tudo e todos com alta performance.

Folha de Franca- Você considera a posssibilidade do diálogo entre as correntes teóricas interessantes na prática clínica?

Heloisa Villela Bittar Gimenes – Acredito sim na interlocução entre abordagens psicológicas e áreas afins. Discutir um caso é ampliar a visão, expandir as possibilidades de entendimento e intervenções. Mas não creio no “espontaneísmo” ou seja,  “ser um pouquinho” de cada abordagem, de cada “coisa legal”. Quando estamos com um paciente, ocupamos um lugar que nos convoca à responsabilidade em escutá-lo pautado em uma teoria, com suas orientações e advertências. Essa é a diferença entre um profissional e um amigo. A escuta deve ser alinhavada com a teoria, chegando a  lugares e possibilidades que o paciente desconhece. Se cada abordagem  faz intervenções para chegar a este lugar, como então variar tudo? Também não seria excesso?
A clínica psicanalítica é sempre atual. Recebemos o paciente que chega com as indagações do seu momento, dentro de seu tempo. Não é somente falar da infância, dar respostas estereotipadas; é adentrar no enigma da existência de cada um e achar um lugar mais confortável onde possa seguir viagem. É construir laços, é também se descontruir para alcançar outras fronteiras ainda não avistadas. A clínica psicanalítica é a clínica da Palavra, não há modernidade que supere isso, já que o humano é território da palavra, da linguagem.
As possibilidades são infinitas. Lá vem Adélia em nosso auxilio: “Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o ‘ de’, o ‘aliás’, o  ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível muleta que me apoia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender…”

Vanessa Maranha

É Psicóloga, Jornalista, Escritora Premiada, colunista da FF.

16 Comentários

  1. Que delícia ” ouvir” a Heloísa!!
    Não só pela minha identificação com a proposta e com os ensinamentos da Escola de Lacan, como também pela sua primorosa didática. Gostei muito da entrevista mas quero destacar um ponto especialmente importante: o momento em que ela, tranquila e corajosamente, aborda a questão do lugar da sua escuta na cena analítica.
    Preceitos são norteadores de grande importância, sem dúvida alguma. Já, os dogmas vem sempre na contramão de qualquer entendimento.
    Vanessa, parabéns pela entrevista!!
    Guardo com carinho o seu “As Coisas da Vida”, cara lembrança sua e daqueles bons tempos de UNIFRAN.

  2. Muito orgulho de ler essa entrega da minha amiga Helô, consigo vê-la em cada palavra, seu sorriso e suas lágrimas.
    Parabéns e sucesso sempre.

  3. Heloisa é uma psicanalista e poetisa, que nos mostra um lado bonito e diferente da vida. É um privilégio fazer parte desse percurso como analisante, como ela diz através da palavra é possível fazer algo inédito, seu consultório acolhedor e uma escuta incrível faz com que caminhemos por novos caminhos e novas possibilidades. Eu admiro muito a Helo!!

  4. Queridas Vanessa e Helô!
    Adorei a entrevista.Perguntas sempre interessantes da Vanessa e respostas inspiradas e tocantes da Heloísa!Muito respeito por estas duas profissionais que escolheram a escuta amorosa e competente do sofrimento humano,tão potencializado em tempos tão difíceis!.Grande abraço às duas.

  5. Lindeza de entrevista! Que dobradinha, hein?! Obrigado a ambas: entrevistada e entrevistadora! Heloísa, sempre admirado da forma como entra na vida!

  6. Heloísa, você é uma profissional maravilhosa, muito estudiosa e atenta às novidades
    Tambem amo seus textos, voce é uma escritora muito sensível. Seus textos são lindos!
    Uma verdadeira inspiração!
    Além de te admirar como amiga, admiro muito sua trajetória profissional.

    Vanessa, parabéns pela entrevista!

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