Governo deixa 58 mil pessoas sem medicamento para doenças autoimunes
No Brasil, 57.957 pessoas que fazem tratamento para controle de doenças reumatológicas, dermatológicas e inflamatórias intestinais com adalimumabe, na apresentação de 40 mg/0,4ml, enfrentam desabastecimento no SUS desde o segundo semestre de 2020.
No estado de São Paulo o problema atinge 19.306 pacientes, de acordo com o Movimento Medicamento no Tempo Certo, da BioRed Brasil, ONG que reúne associações de pacientes de todo o país.
Também há problemas com a versão pediátrica, de 20 mg, utilizada por cerca de 600 crianças no país.Neste caso, a farmacêutica global AbbVie, que é a responsável pela fabricação e distribuição do adalimumabe de referência (Humira), fez a doação de 2.000 frascos ao Ministério da Saúde. O remédio é adquirido pelo governo federal e distribuído aos estados, que fazem a dispensação através das farmácias de alto custo.
É importante ressaltar que as duas apresentações do medicamento estão com o registro ativo na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas outros fabricantes podem vender biossimilares no Brasil.
Priscila Torres, 40, tem artrite reumatoide. Ela coordena a BioRed Brasil. “A situação é desesperadora. É um medicamento que as pessoas não conseguem comprar. Para o Ministério da Saúde, ele custa R$ 11 mil por paciente por ano. Para o consumidor final, que precisa tomar mensalmente as duas injeções da caixa, o custo na farmácia é de R$ 9.200 por mês”, diz ela.
As sociedades brasileiras de Dermatologia e Reumatologia, e o Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil enviaram uma carta ao ministério, onde manifestam preocupação com a falta do medicamento.
“Sua descontinuidade pode gerar consequências irreparáveis para a saúde do paciente, como perda de visão, de um segmento intestinal e deformidades permanentes. Em muitos dos pacientes é a única droga capaz de controlar a doença, deixando a grande maioria dos usuários com a doença inativa. No caso da hidradenite, de alta carga inflamatória e morbidade, não há sequer substituto terapêutico com potencial capacidade de controle da doença”, afirma trecho do documento.
Indicado para artrite reumatoide e psoriásica, espondilite anquilosante, doença de Chron e retocolite ulcerativa, entre outras, o medicamento é injetável e pode ser aplicado pelo próprio paciente.
As irregularidades na entrega começaram em julho; no mês de outubro, a dispensação foi normal. Entre os meses de janeiro e março de 2021, o Movimento Medicamento no Tempo Certo recebeu 700 denúncias sobre falta do medicamento em todos os estados brasileiros.
O Ministério da Saúde afirmou que enviou medicamento suficiente para atender os pacientes cadastrados nos últimos três meses de 2020 e nos primeiros 39 dias de 2021.
Para suprir a demanda do primeiro trimestre seriam necessárias 173.871 caixas, mas foram enviadas 87.795.
O ministério diz que aguarda a finalização do processo de compra via pregão eletrônico para dar continuidade ao abastecimento da rede –o edital para início do processo de pregão não havia sido publicado até esta segunda-feira (29).
Em nota, a farmacêutica AbbVie afirmou ter estoque para suprir as necessidades do medicamento, via Ministério da Sáude, para os pacientes que dele necessitam e têm prescrição para recebê-lo. O laboratório aguarda a publicação do edital para avaliar sua participação no processo.
Ainda segundo a AbbVie, desde 2007 a empresa cumpre rigorosamente os termos dos contratos e cronograma de entrega do medicamento ao Ministério da Saúde, bem como a todas demais instituições de saúde que assim o necessitem.
Ainda não há previsão para a normalização do fornecimento de adalimumabe, que é de uso contínuo. A sua interrupção reativa a doença e pode ocasionar a formação de anticorpo antidroga, ou seja, quando aplicado novamente, não fará mais efeito. A explicação é da Mariana Deboni, gastroenterologista pediátrica e coordenadora do Ambulatório de Doenças Inflamatórias Intestinais Pediátricas do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo. A médica também integra o Gediib (Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal do Brasil), que atende 150 pacientes com até 18 anos de idade e doença de Crohn ou retocolite ulcerativa, que são subtipos da doença inflamatória intestinal.
O problema na gastroenterologia pediátrica é que só há dois biológicos para utilizar em crianças: infliximabe e o adalimumabe.
“Para o paciente que faz uso do adalimumabe é a última opção terapêutica. Quando temos a notícia da interrupção do fornecimento do medicamento, é uma tragédia. Se o paciente perder essa medicação, teremos que nos voltar a outros tratamentos, inclusive o uso de corticoide ou corticosteroide, com efeitos colaterais. Numa época de Covid-19, é uma medicação que está associada ao aumento do desfecho desfavorável da doença em pacientes com doença inflamatória intestinal”, explica Deboni.
“Fiquei impactada com a notícia por dois motivos: a gente soube que a interrupção no fornecimento foi por falta de compra do remédio e porque o governo está fazendo um pregão de licitação e oferecendo o biossimilar do adalimumabe, produzido por outros laboratórios. A grande problemática é que a gente teve uma interrupção abrupta do tratamento sem ter outra opção e o Ministério da Saúde já está impondo numa decisão verticalizada, que não é compartilhada com o médico ou paciente”, afirma. A participação de marcas diferentes no processo de licitação não é vista com bons olhos pelos médicos. “A substituição automática do medicamento não pode ser feita sem que haja conhecimento e autorização do médico responsável pelo paciente”, diz Deboni.