Opiniões

O Índio, o ‘todes’, o gordo e o criado-mudo

06/05/2027 – quinta-feira

José Raimundo da Silva tem 67 anos, é casado há 45 anos com Dona Iracema, uma loira matrona, e ambos têm 4 filhos criados e já independentes.

José Raimundo sempre teve cabelos lisos e pretos. Seus olhos parecem os do homem do quadro ‘Mestiço’, de Cândido Portinari. Sua pele é parda, seu avô dizia que seu avô falava tupi-guarani.

Quando jovem, José Raimundo recebeu o apelido de Índio, alcunha que o acompanha. Já mais velho, passou a ser chamado de ‘Seu Índio’ pelos conhecidos.

Todo ano vai para Ubatuba e na volta dá uma passadinha na ‘Paricida do Norte’.

José Raimundo é comerciante, toca um boteco muito movimentado no bairro. O estabelecimento se chama ‘Bar do Índio’, estabelecimento aberto há mais de 35 anos e dali tirava o sustento de sua família.

José Raimundo é apenas um homem comum.

Em respeito ao apelido, e por tratar de pessoa com a qual queremos intimidade, chamaremos José Raimundo do jeito que ele gosta de ser chamado, Seu Índio.

Pois bem, quinta-feira a tarde de um dia sem movimento. Um frequentador de férias acabava de tomar uma cerveja enquanto assistia a uma reprise de uma partida de futebol da noite anterior, pediu para marcar na conta e foi-se embora.

Enquanto lavava alguns copos e fazia uma limpeza no balcão, entrou no bar um grupo de mais ou menos 12 pessoas. Dentre alguns pequenos cartazes, um se destacava: ‘Coletivo Babalu em Cores’.

Seu Índio saiu de trás do balcão e o líder do coletivo, um rapaz magrinho usando sandálias de couro, estendeu a mão, entregou um papel e disse:

_ Você é José Raimundo da Silva? Tenho essa notificação.

Seu Índio colocou os óculos e leu no documento:

“Fica notificado Vossa Senhoria para que mude o nome do estabelecimento ‘Bar do Índio’ para ‘Bar do Indígena’, sob risco de arcar com medidas judiciais vindouras. Contando em ser prontamente atendidos nesse cordial pedido, desde já agradecemos”.

Seu Índio riu, achando que aquilo era uma brincadeira. Mas foi advertido por uma jovem de cabelos azuis, que se apresentou como representante da OAB, alertou sobre a incorreção do termo e, com veemência, passou a expor as diferenças entre índio e indígena:

_ O termo ‘índio’ é pejorativo que reafirma preconceitos, levando a crer que são homens selvagens ou seres do passado. Já ‘povos indígenas’ valoriza a cultura.

Depois de ouvir pacientemente as explicações por uns 5 minutos, como sua casa era ao lado do bar, Seu Índio gritou sua esposa e pediu para que ela trouxesse os documentos do estabelecimento comercial (em dia com todos tributos e demais burocracias):

_ Bem! Bem! Ô, Iracema! Pega pra mim os documentos.

_ Onde tá? – respondeu Dona Iracema lá de dentro de casa.

_ Dentro do criado-mudo, sô!

Quase que como um raio, um jovem acima do peso se adiantou e meteu a mão na cara do Seu Índio:

_ Com fascistas o trato é assim!

Neste momento, a que se fazer uma pequena observação. Seu Índio guarda no fundo da alma as lembranças da rigidez de seu pai, um homem que batia nos filhos como que para esquecer as frustrações diárias que a vida lhe trazia. E a surra que mais lhe doeu, não no corpo, mas na alma, foi uma tapa que cara que levara do velho pai.

O forte velho Seu Índio revidou a agressão, deu um murro no peito do rapaz, que caiu de costas e espatifou uma mesa de plástico do bar.

O homem expulsou o grupo de dentro do bar e Dona Iracema, que saiu correndo de casa quando ouviu o rebuliço, segurou o marido, que já estava com uma garrafa na mão a ponto de fazer uma bobagem.

O coletivo ficou nas redondezas e foi chamada a Polícia Militar.

Seu Índio nunca tivera problemas com a polícia. Minto, no final de 1993, sem saber, comprou uma televisão de 10 polegadas que era produto de furto. Uma receptação da qual nem ele se lembrava.

_ O que aconteceu? – o jovem Cabo perguntou ao dono do bar.

Seu Índio estava nervoso, sentado numa cadeira e Dona Iracema estava preocupada com a pressão sempre alta do marido.

_ Esse povo entrou aqui. Aquela do cabelo azul veio me chamando a atenção por causa do nome do meu bar, colocando banca. Depois, ele me agrediu quando pedi para pegarem os documentos do bar em cima do criado-mudo. Sou homem, tenho esse bar há mais de 30 anos, revidei e coloquei esse povo para fora. Todos ficaram me xingando.

_ É ‘elu’! É ‘todes’! – algumas vozes surgiram no meio do coletivo.

Seu Índio exaltou-se novamente:

_ Que ‘elu’ o quê? Esse gordo, esse barrigudo que me deu um tapa. Não respeita os mais velhos.

O policial, que anotava tudo, disse calmamente a Seu Índio:

_ O senhor precisa ter consciência. O termo ‘gordo’ é pejorativo, dá gatilho. O correto é ‘elu’ e ‘todes’. E ‘criado-mudo’ é termo que não se usa mais. Terei de prendê-lo em flagrante pelos crimes de gordofobia, racismo e homofobia. Terei de algemá-lo. Vamos para a delegacia.

Pasmo e inerte, Seu Índio foi algemado, no mesmo momento em que lacraram o estabelecimento ‘Bar do Índio’.

23/07/2027 – sexta-feira

Se apresentando respeitosamente perante o Juiz de Direito, o estagiário comunicou que três processos digitais já estavam com o despacho pronto e só faltava a assinatura digital do Magistrado.

O Juiz fechou as abas da Shoppi, Shein, Amazon e Magalu no navegador, abriu o sistema do Tribunal, pediu para o estagiário se sentar e começou a ler os despachos.

O primeiro processo, um homem executou a ex-esposa com um tiro na cabeça. O juiz assinou o despacho autorizando que o feminicida aguardasse o julgamento em liberdade, justificando que não havia mais riscos para a sociedade e muito menos para a vítima morta.

O segundo, um motorista bêbado atingiu na traseira de uma moto e matou um jovem casal. Como atendia aos requisitos legais, o motorista foi colocado em liberdade, com a advertência de que bebesse menos.

O terceiro processo requereu um pouco mais de atenção do Juiz. O estagiário ousou comentar:

_ Esse fiquei na dúvida, Excelência. O homem praticou uma série de atos graves. Não sabia o que despachar.

Esgotado de ler as quatro laudas do relatório, o Juiz se expressou colocando o lábio superior próximo do nariz, numa cara de nojo:

_ Olha o ano que estamos e ainda tem gente desse tipo. Se chama Índio, e não indígena. Fala ‘gordo’. Não usa gênero neutro. Diz ‘criado-mudo’. Francamente, sem paciência para esse tipo de coisa. Vai aguardar o julgamento preso.

Michel Pinto Costa

É Oficial de Promotoria do Ministério Público do Estado de São Paulo, em Franca, e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.

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