Pessoa de confiança
Acostumado aos números, levantando custos, fazendo contas, naquelas máquinas calculadoras a manivela, que tinham por língua o papel que vinha da bobina todo estampado das operações que o seu usuário lhe enfiava pelos toques rápidos de dedos, não se deixou ser máquina.
Devia ter gravado em sua personalidade a marca de simplicidade que, em seu rosto ligeiramente maior que o meu, tomava a forma de so(l)rriso.
Fui poupado de cara feia que ele tenha feito em todo o tempo em que pudemos nos relacionar social e politicamente.
Como assim?
O cara não era desses chatos do setor financeiro da industrial de calçados e que por sua expertise era disputado a tapa pela concorrência? Era. Era diferente. Fazia conta de gente. A diferença dele somava e multiplicava, para assegurar o quê dividir, na realização dos resultados que qualquer empregador adoraria auferir e, com alguma consciência de valorização de seus colaboradores, distribuir a estes, centavos de migalhas que fossem.
Esta comuna, que exalava cheiro de cola, fumaça poluída e de odor fétido das chaminés de curtumes, e de camadas invisíveis de uma fragrância indesejável de couro cru que grudavam na pele, e em que sapateiros eram contaminados pelo chumbo de tachinhas e pregos, mudando os sobrenomes de suas centenas de vítimas para Saturnismo, teria que ter algo melhor para os seus operários e operadores de sua gestão pública.
Gilmar Dominici, o amigo e parceiro de vereança, em uma eleição surpreendente e emocionante, em 1996, teve sua cadeira da Câmara Municipal trocada pela de Prefeito. Novos tempos teria que construir, como novos conceitos de participação popular e definição de prioridades. Cobertores curtos. Milhares de excluídos dos bens e riquezas da cidade a que serviam. O orçamento, objetivamente, incapaz de dar respostas às pautas populares.
A alguma custa, Luiz Cruz, o consagrado professor de literatura e de língua portuguesa e escritor de nomeada, poeta dos poetas destas bandas e rincões, sacou do bolso de seu nunca usado colete, ou de algum bolso fantasma de suas camisetas sem golas, uma indicação irrecusável para ocupar o cargo de ouvidor e de técnico de assuntos de controles internos na primeira administração do Partido dos Trabalhadores.
Creio que tomaram posse juntos: Prefeito (dono da caneta), Secretário de Educação e, depois, de Finanças (nomeador) e o nomeado: ANTENOR JOSÉ DE OLIVEIRA FILHO, o nosso Antenor!
Com a mesma discrição com que aceitou a incumbência, para auxiliar no adestramento e a bridar a gessada e obesa burocracia da Prefeitura, seguiu até a publicação de seu desligamento enquanto ocupante de cargo de confiança de Gilmar Dominici, em portaria que selaria o encerramento do segundo mandato deste seu companheiro.
Companheirismo, à falta de expressão mais adequada, pode perfeitamente funcionar como sua identificação em seu lar, nos escritórios das fábricas, nos corredores e nos gabinetes em que teve que se aguentar para dar o melhor de si no Paço Municipal.
Quantas oportunidades tive para dizer ao Antenor que, mesmo sendo titular de atribuições de alta responsabilidade na administração local, fazia questão de trabalhar em uma mesinha que mal comportava a sua cadeira, qual aquelas ridículas das escolas de periferia e rurais. Economizava nos detalhes. Auditava para fiscalizar a aplicação dos recursos. Dava exemplo para ele mesmo e, com o seu invariável jeitão de mineiro criado no asfalto, seguia firme na sua humildade.
Afastados da exaustiva carreira política, e de eleições, por decisões pessoais, Antenor e eu tomamos distância um do outro. Um dó. Fomos mutuamente injustos.
Entre um tombo e outro, lá se foram Antenor e sua família e seguir pelas linhas, campos e quadros de suas planilhas. Quantas jamais compreendemos!
Até que, numa dessas que a vida arruma pra cabeça de qualquer um, estando no Lar de Ofélia, vim a saber que, em estado de saúde de avançada degeneração, por complicações neurológicas e acidentes que estrangulam o cérebro, não mais emitindo um som inteligível, pôs-me a mim a ficar angustiado, entristecido demais, por estar a visitar a quem amava como amigo e de cuja boca jamais sairia um cumprimento. Seu abraço, carinhoso e completo, logo concluí, não mais ganharia.
Voltei mais duas vezes naquele quarto de caraterísticas ambulatoriais. Tendo Cristo ressuscitado ao terceiro dia, na terceira das visitas ele abriu os olhos, moveu-se dificultosamente no leito, deu de arredar equipamentos e sondas, e ao me reconhecer, de vistas, abriu os ouvidos para me ouvir informar que o nosso amigo comum Gilmar Dominici lhe faria uma visita, na primeira das brechas de agenda de seus compromissos em Brasília. E que podia saber das minhas orações por sua recuperação e vida.
Teve apagão com os símbolos da matemática e, para me ferrar, beijou uma de minhas mãos. Foi a deixa para eu lhe devolver um em seu rosto, como um ósculo santo.
Na nona hora deste domingo, 18, o Zap me desperta para a mensagem do ex-Prefeito Gilmar. Sacaneou com o nosso final de semana. Teve que me comunicar o falecimento daquele que, para iniciar o seu descanso eterno, perdeu dois filhos!
- Antenor nos deixou, Théo: “Nosso amigo descansou; … sempre sinalizando grandeza de alma”.
- “Pai querido, obrigado pela alegria e prazer de ter tido a amizade do Antenor, oro, escrevendo essa póstuma homenagem. O Senhor o poupou de saber que sua amada esposa Augusta, nestes dias, não anda nada bem de saúde; está operada do coração. O Senhor sabe todas as coisas. Ele não resistiria ver mais essa sequência de dores, menos ainda na mulher de seu coração e fonte de sua força para chegar ao ponto final de uma nova experiência com o seu Criador. Amém.”