“Sábios em vão”
Tomo emprestada essa expressão do mestre Chico Buarque para
discorrer sobre algo que vivemos cotidianamente: o amor. Um sentimento que
mudou com o passar dos tempos, e cada momento histórico teve sua forma de
amar. Isso demonstra que amamos com referência ao nosso tempo. Os gregos
amavam os semelhantes, os romanos buscavam o prazer, os medievais eram
tementes a Deus e amavam hipocritamente, e nos nossos dias transformamos o
amor em mercadoria.
A indústria cultural reforça essa ideia. Vende-se a ideia nas músicas, no
cinema, nas artes e na internet de que o amor só é válido se for útil. Vende-se a
ideia de que, como dizia Nietzsche: “Você ama o desejo, não o desejado”. Esse
filósofo em específico faz uma crítica moral, uma constatação de nossas
relações. Para ele, somos profundamente egoístas. Logo, quando amamos, na
verdade estamos apenas buscando satisfazer nossos próprios desejos,
buscando o que o outro pode nos “servir e produzir”.
Mas se olharmos no sentido que Zygmunt Baumann brilhantemente
observou em sua obra mais conhecida, “Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos
laços humanos”, perceberemos que a questão não é apenas moral, mas
estrutural da sociedade capitalista. Para ele, nos relacionamos da mesma forma
que nos relacionamos com as mercadorias. Assim, objetificamos o outro e o
transformamos em mercadoria para satisfazer nosso desejo. Da mesma forma
como trocamos mercadorias quando estão defeituosas, trocamos nossas
relações.
O efeito desse tipo de amor em nosso tempo é que ficamos cada vez mais
individualistas e não permitimos compreender quem o outro é. Apenas o usamos
para produzir sensações e sentimentos, e quando encontramos defeitos nessas
sensações, o outro se torna descartável.
Obviamente, isso não é exato. É dialético e cheio de contradições.
Canções belíssimas lutam contra esse tipo de amor objetificado e utilitário. A arte
é a expressão sensível que nos permite dizer as coisas com beleza e delicadeza.
A música “Futuros Amantes”, que mencionei neste artigo, é a expressão desse
amor não mercadológico, que não precisa de objetivos, que não precisa nos
fazer falta para que o queiramos. Ele apenas existe, e pelo fato de existir, alguém
se inspirará: “Não se afobe, não, que nada é pra já. Amores serão sempre
amáveis, futuros amantes, quiçá, se amarão sem saber, com o amor que eu um
dia deixei pra você”.
Essas contradições entre o “ser” e as “coisas” também se expressam na
letra da inconfundível Rita Lee. Na música “Minha Vida”, ela cita os lugares, as
coisas, mas sempre termina: “De você me lembro mais”. O que Baumann, Chico
e Rita denunciam é que passamos tanto tempo preocupados em ter, nos
relacionando de forma mercadológica, mas o que de fato ficará para a eternidade
é quem você é, como amou, como se relacionou e com quem conviveu. Ninguém
lembrará dos carros, das dívidas, dos sofás, dos celulares e das relações que
consumimos ao longo da vida.
As estruturas sociais nos impõem nos relacionarmos e amarmos de forma
mercadológica, nos constrangem e nos incentivam cotidianamente a agir dessa
forma. Esse é o poder da ideologia. Pode parecer ser “sábio em vão” discorrer
sobre essas questões, uma vez que a maioria nem reflete sobre isso. Mas o que
seria de nós se perdêssemos a capacidade ao menos de sonhar com uma vida
em que nossas relações não fossem baseadas na exploração de qualquer tipo?
Por isso, nessa sociedade do consumo individualista, amar profundamente sem esperar algo em troca, estar com o outro porque queremos estar e não porque sentimos falta, é revolucionário e libertador.