O Carteiro e o poeta
1994, filme belgo-franco-italiano, direção: Michael Radford, 118 minutos.
O filme ganhou Oscar 1996 para Melhor Filme, Melhor roteiro adaptado, Melhor Ator (Massimo Troisi), Melhor Trilha Sonora original.
Pablo Neruda, por razões políticas, se exila em uma ilha na Itália. Há tanta correspondência endereçada ao escritor que Mario, quase analfabeto, até então desempregado, é contratado como carteiro “extra”. Seu trabalho é simples: entregar as inúmeras cartas que chegam para Neruda. Aos poucos, Mario se torna um estudante do poeta, torna-se seu amigo, e usa a arte da poesia para impressionar uma garçonete que quer conquistar.
O carteiro Mario, aos poucos, aprende a escrever seus sentimentos por Beatrice, e Neruda ganha, em troca, um ouvinte compreensivo para suas lembranças saudosas do Chile.
Baseado no livro Il Postino, de Antonio Skármeta.
POR QUE GOSTEI: Ontem revi um filme Neruda, 2016, outra história, sobre este poeta que tanto influenciou o povo chileno, Nobel de Literatura, 1971, ativista político, amigo de Allende, presidente socialista derrubado por uma ditadura militar sangrenta, que matou milhares de seus conterrâneos. E me lembrei deste O carteiro e o poeta, 1996, tão delicadamente focado na poesia e na amizade, no amor e na possibilidade de encantamento, via palavra, capaz de metaforizar a vida e criar situações inusitadas e surpreendentes.
Neruda no exílio e este encontro imprevisto entre um semi-analfabeto e um poeta famoso, sofisticado, e, no entanto, interessado em ampliar a possibilidade de este simples carteiro ver o mundo com outros olhos, de abrir nele infinitos mundos a partir de uma sensibilidade cultivada. Via palavra poética, é possível acessar sentimentos novos e integrar experiências para as quais não havia dantes palavras. Nomear o que se vive é constituição de humanidade – tornamo-nos mais humanos quando identificamos situações vividas, mas não pensadas, não registradas, não nomeadas. Ter uma palavra para o vivido não nomeado é abrir a possibilidade de comunicar – consigo mesmo e com o Outro. Permite o diálogo, a conversa. Civiliza, à medida em que as diferenças podem ser contempladas e reconhecidas. Este é um filme civilizatório. Agrega o carinho que devemos ao alfabetizar a sensibilidade, a quem não tem iguais oportunidades, em direção a uma maior humanização. Seremos mais humanos quando pudermos contemplar todas as desigualdades presentes na cor, etnia, gênero, cultura, estatuto socio-econômico, que compõem o “ser humano”, e pudermos nos responsabilizar pelo rumo e construção de maiores e melhores condições para os que não pertencem à nossa “tribo”.
LIVRO: Ideias para adiar o fim do mundo
2019, Companhia das letras, 85 páginas
Uma parábola sobre os tempos atuais, por um de nossos maiores pensadores indígenas.
Ailton Krenak nasceu na região do vale do rio Doce, um lugar cuja ecologia se encontra profundamente afetada pela atividade de extração mineira. Neste livro, o líder indígena critica a ideia de humanidade como algo separado da natureza, uma “humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô”.
Essa premissa estaria na origem do desastre socioambiental de nossa era, o chamado Antropoceno. Daí que a resistência indígena se dê pela não aceitação da ideia de que somos todos iguais. Somente o reconhecimento da diversidade e a recusa da ideia do humano como superior aos demais seres podem ressignificar nossas existências e refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo.
“Nosso tempo é especialista em produzir ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar e de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta e faz chover. […] Minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história.”
Desde seu inesquecível discurso na Assembleia Constituinte, em 1987, quando pintou o rosto com a tinta preta do jenipapo para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas, Krenak se destaca como um dos mais originais e importantes pensadores brasileiros. Ouvi-lo é mais urgente do que nunca.
Esta nova edição de Ideias para adiar o fim do mundo, resultado de duas conferências e uma entrevista realizadas em Portugal entre 2017 e 2019, conta com posfácio inédito de Eduardo Viveiros de Castro.
POR QUE GOSTEI: Em Portugal, o título da palestra foi “A humanidade que pensamos ser, 2017. A associação, quando me lembrei do filme baseado no livro de Skármeda, foi quase imediata. Tenho lido Krenak, em quase todos os livros que publica. Podemos ouvi-lo em vídeos também.
Ailton Alves Lacerda Krenak OMC, mais conhecido como Ailton Krenak, completa 70 anos em 29 de setembro, é um líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor brasileiro da etnia indígena crenaque. Ailton é também professor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e é considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, possuindo reconhecimento internacional.
A primeira vez que o vimos, em 1987, pintando seu rosto de jenipapo, na Assembléia Constituinte, em 1987, era para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas. E quantos retrocessos e quantos ataques os indígenas têm sofrido desde a Constituinte de 1988. A lei, no Brasil, vale tanto quanto a vida de tantos desiguais perante a Lei? Felizmente há mais vozes indígenas hoje, presentes no Congresso, e em outros cargos importantes para serem ouvidos. Mudar uma mentalidade é coisa de séculos, sabemos. Os nativos, quando cá chegaram os europeus, os portugueses e outros, aqui viviam com seus problemas e com a pródiga natureza. Tinham uma cultura, totalmente desprezada. Mas podemos reconhece-la e aprender com ela. Basta abrir os ouvidos, e os olhos, sermos nós os “carteiros” (como o protagonista Mario, do filme acima sugerido) semi-analfabetos para culturas que “esquecemos” de considerar…