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Ciscando Aventuras

FILME: A felicidade das pequenas coisas

(2020, PAWO CHOYNING DORJI,  produtor, diretor e roteirista, 105 minutos).

Um jovem professor no Butão, Ugyen, foge de seu trabalho enquanto planeja ir para a Austrália para se tornar um cantor. Como castigo, seus superiores o mandam para a escola mais remota do mundo, uma vila glacial do Himalaia chamada Lunanao. Ele se vê exilado de seus confortos ocidentalizados após uma árdua jornada de 8 dias apenas para chegar lá. Lá ele não encontra eletricidade, nem livros, nem mesmo um quadro-negro. Embora pobres, os aldeões dão as boas-vindas ao novo professor, mas ele enfrenta a difícil tarefa de ensinar as crianças da aldeia sem nenhum material. Ele quer desistir e ir para casa, mas começa a aprender sobre as dificuldades na vida das belas crianças que ele ensina e começa a ser transformado pela incrível força espiritual dos aldeões.

POR QUE GOSTEI:  Vi o filme no Telecine, e estava sendo apresentado em cinemas, 2022.  O filme me capturou enquanto zapeava a TV.  Uma frase valeu pelo filme. Ugyen, o protagonista, tem o sonho de ir para Austrália e acaba em uma vila que fica isolada no inverno, quando neva, de poucos habitantes, e quando procura saber dos seus alunos por que querem estudar, tem a resposta de um pequeno aluno, por volta dos 9 anos: “quero ser professor”.  Ugyen, então, diz que seria ótimo por que poderia ensinar a comunidade, e pergunta por que quer ser professor. E o aluno responde: “porque o professor transforma o futuro”.   Isso é repetido por um adulto, em outra conversa de Ugyen, que é recebido com muita honra por toda a comunidade.  Ugyen recebe todo o apoio possível para que se sinta confortável, tudo lhe é oferecido.  Aos poucos Ugyen vai sendo transformado pelo estilo de vida rústico, mas pleno de sabedorias, da comunidade.  Ilustra bem a frase de Guimarães Rosa: “mestre é o que de repente aprende”.  E também outra: “felicidade a gente tem em momentos de descuido”.  Ugyen, a princípio contrariado em seu desejo, percebe que talvez esteja equivocado no que procura para se sentir feliz…

LIVRO: Ensaio sobre a cegueira

(José Saramago, SP: Companhia das Letras, 1995, 312 páginas).

 Ensaio sobre a Cegueira” é um romance de José Saramago, Nobel da Literatura em 1998, que nos conta a história de uma epidemia que assola as pessoas de uma grande metrópole, que as deixa cegas. As autoridades diante disso, colocam as pessoas “em quarentena” num manicômio, por acreditar que a doença seja contagiosa. Quando a “cegueira branca” se torna uma epidemia, os problemas da sociedade ficam expostos e aumentam notavelmente, já que ninguém “enxerga” para mudar. Em outras palavras: as regras da civilização são quebradas e o instinto de sobrevivência toma conta do homem, constatando o velho ditado, “quem pode mais chora menos”.

POR QUE GOSTEI: Confesso que este foi um dos, senão “o” livro mais difícil para ler… tenho tido outros assim difíceis, como um de Valter Hugo Mãe.  Tive sensações difíceis, em alguns momentos uma náusea profunda ao vislumbrar, no romance, aspectos complexos e muito primitivos da condição humana, quando confrontada a extremos da sobrevivência.  O que acontece com o psiquismo quando assim confrontado?  Há muitas estratégias de sobrevivência e algumas permanecem crônicas, mesmo que a vida se configure diferentemente.  Isto mostra o caráter da pessoa.  Há pessoas que em crise profunda mantêm seus valores. Há outras que não. Há aquelas que, por sobrevivência, enlouquecem. Outras se tornam pervertidas, perversas. Neste livro, sem dó nem compaixão, Saramago mostra o que acontece quando a condição humana se mostra assim – no seu miserê mais profundo.  Talvez nos ajude a pensar no que passamos no auge da pandemia, no mundo inteiro.  Algumas pessoas se tornaram solidárias, criativas. Outras vociferam e aproveitaram o medo profundo que se abateu na maioria e manipularam mentes e corações. Muitos sucumbiram – perdemos, oficialmente (porque houve mesmo uma sub-notificação) 700 mil brasileiros, jovens, crianças, e idosos.  Perdemos em cada um, uma, pedaços da nossa história.  A cultura sobrevive também em alguns, algumas pessoas anônimas. E nosso futuro depende também da sobrevivência de muitos.  Os sinos dobram por todos nós quando um de nós se vai.  Somos continente, e não ilhas – dependemos uns dos outros. Saramago é considerado por muitos gigantes da nossa literatura portuguesa-africana-brasileira, falantes da mesma língua, como alguém que abriu caminhos, que teve coragem de sustentar uma dignidade e uma luta contra a desigualdade social e econômica que se abate na humanidade, no mundo atual. Ganhou um Nobel, honraria para nossa língua, um tanto amesquinhada no contexto mundial.  Vale a pena atravessar o vale de lágrimas, sangue, no cenário que Saramago constrói sua ficção, para melhor mostrar nossa realidade. Vinte e cinco anos antes do início da pandemia, este visionário antecipa situações que vivemos hoje, danadas de difíceis. 

O filme, homônimo, de Fernando Meirelles, 2008, Blindness, criado com Saramago ainda vivo e por ele validado, me pareceu muito mais fácil de ver e acompanhar. Talvez porque a verve de Saramago estava cristalizada em suas palavras e eu já tinha atravessado a experiência emocional em minhas vísceras. Coração e mente. Talvez Meirelles, em uma nova criação (a linguagem cinematográfica é diferente da linguagem literária), tenha “suavizado” a tamanha catástrofe. O leitor e telespectador pode comparar e tirar suas opiniões ou opiniães, na linguagem de Guimarães Rosa.    

Maria Luiza Salomão

Maria Luiza Salomão é psicanalista pela Sociedade de Psicanálise de São Paulo e mediadora de leituras, participante do projeto Rodalivro, membro da Academia Francana de Letras. Correspondente da Afesmil (Academia Feminina Sul-mineira de Letras).

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