Ciscando Aventuras
FILME: Memórias de amor
(filme britânico, direção: Harry Macqueen, 2020, 93 minutos).
Sam e Tusker, casados há 20 anos, viajam pela Inglaterra em seu antigo trailer visitando amigos, família e lugares de seu passado, após Tusker ser diagnosticado com demência em estado precoce. Agora, o tempo que passam juntos é a coisa mais importante que eles têm.
Os diálogos sobre a demência, sobre os pequenos gestos que vão denunciando a doença, sobre a morte, sobre a separação, sobre o momento do “adeus final”. A solidão que enfrentarão – o que está morrendo, e o que sobreviverá – são emocionantes, verdadeiros, nada adocicados. O casal conhece intimamente um ao outro: um é escritor e o outro músico, pianista. Os atores – Colin Firth (Sam) e Stanley Tucci (Tusker), ótimos, muito bem sintonizados, uma “química especial” os une no filme.
POR QUE GOSTEI: Fui atraída pelos atores, realmente muito bons. E agradavelmente surpreendida pela forma como foi retratado um momento de maturidade, em que o casal em viagem, sentidamente como despedida, em um trailer, vai visitar a família de Sam. Tusker parece planejar a viagem como a sua última, antes de afundar em uma demência, cujos sinais já são perceptíveis. Sam, em grande sofrimento, vê os sinais, mas não quer pensar no desdobramento da doença, suas consequências, e no que teria que sustentar no convívio. Tusker, como escritor, pensa pelos dois. Sam, como músico, sente intensamente pelos dois. Vi uma crítica que diz que há uma atmosfera de frieza. Eu não! Vi amadurecimento e uma intimidade de ternura e renúncia difícil à onipotência, de um e de outro. Há momentos na vida que são incontornáveis e dependemos, essencialmente, de boa companhia para enfrentá-los. Com objetividade e sensibilidade, respeito e grandeza. Há que se aprender, não com os anos de vivência biológica, quando simplesmente envelhecemos, mas com a história construída internamente e com largueza de alma, o momento em que – complexamente – assumimos nossa solidão essencial. Solidão plena em dois vitais momentos – nascimento e morte.
LIVRO: Autobiografia da Rita Lee
(by Rita Lee, Ed. Globo, 352 páginas).
Rita Lee: uma autobiografia é um livro de memórias escrito pela cantora e compositora brasileira Rita Lee e publicado originalmente em novembro de 2016. O livro foi recebido positivamente pela crítica, sendo considerado um “ensinamento à classe artística” por um jornalista. Em fevereiro de 2017, após quatro meses no topo da lista de obras de não-ficção mais vendidas – mais de duzentos mil exemplares, no total. Publicada em Portugal, abril de 2017. O livro ganhou o prêmio de melhor biografia da Associação Paulista de Críticos de Artes de 2016, sendo a cantora premiada na mesma cerimônia por seus trabalhos no campo da música popular. Escrita por Rita, a narrativa tem a participação do jornalista e estudioso do legado cultural da artista, Guilherme Samora, no papel de Phantom. O “fantasminha” aponta alguns esquecimentos ou alguma data mais precisa – de forma bem-humorada – quando Rita não se lembra de algum dado.
POR QUE GOSTEI: quem gosta de biografias? Eu gosto. E de autobiografias? Só se for artistas geniais, ou grandes pensadores, feito Rita Lee, porque é difícil se revelar, é preciso coragem! Nem quero, gosto, ouso tentar decifrar esta vida turbulenta desta roqueira: sei que sua vida foi pedreira, pedras felizmente rolaram (“roquenrrou”), e rolaram bem talentosas. Rita sempre me encantou pela doçura irreverente, quase um paradoxo juntar irreverência com doçura. Ela canta o que é politicamente incorreto, com voz tão mansa e harmoniosa, que os contrários se casam. O resultado é um pensar gostoso, com sabor de coisa viva, de gente humana. Fiquei surpresa pela imensa gratidão de Rita pelo amor que recebeu, pela família de origem que lhe sustentou, em muitos momento, e pela que criou com o seu gato, o Roberto, e seus três filhos. Não deveria me surpreender, já que ela espalhou muito lança-amor-perfumado através das músicas que o Brasil todo cantou e dançou. Eu dancei muito ao som e sentido de Rita Lee. Seu livro (já vou encomendar o último, também autobiografia, lançado no dia de Santa Rita de Cássia, em maio) vem recheado de fotos. Linda, leve e livre. Muito bom ter mais este patrimônio cultural brasileiro – uma mulher valente, corajosa, mente aberta, que sofreu muito, não se arrependeu do que viveu, que escreveu sobre sua vida de forma desarmada, como só quem é grande é capaz. Ave, Rita!