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As touradas, a Espanha e Vinny Junior

Sou neta de espanhóis de Almería, uma região ao sul da Espanha que deve ter fornecido a maioria dos imigrantes que vieram para o Brasil no início do século XX. Na nossa família nos reuníamos sempre, tios-avós, primos em 2º e 3º graus, fazíamos chorizo e morcillia, dançávamos o flamenco, ouvíamos músicas e falávamos a língua… ou seria “gritávamos”? Minha família espanhola era constituída, na maioria, de gente batalhadora, vieram para o Brasil para ganhar a vida, mas não posso negar que eram aguerridos, estopim curto, gente muito brava…

Quando fui para a Espanha pela 1ª vez, logo quis ver uma tourada em Madri. Nas nossas casas as cenas das touradas se repetiam pelos quadros nas paredes, pelas capas de LPs, pelos cartões postais. Era uma experiência que queria viver. Uma das minhas companheiras de viagem também era neta de imigrantes espanhóis, daí fomos nós duas e os nossos maridos. Nossa outra companheira disse que era contra touradas e não quis ir. Achei insensível da parte dela… “afinal as touradas eram uma manifestação cultural do pais, uma tradição que vem desde a Idade Média”, pensava eu…

Bem, lá fomos nós.

Ao chegarmos na arena, na Plaza de Toros, vimos que estava lotada, parecia uma final de futebol!! Pessoas animadas, felizes, rindo muito, festejando, tomando seus vinhos em suas botas, aquela bola de couro típica, mais parece um cantil. Até a mãe do rei de Espanha estava lá naquela tarde. Meu sangue espanhol fervia de emoção: O que poderia ser mais excitante que isso?

Então entra o touro. Os banderilleros o espetam com 6 bastões com ponta de arpão, as chamadas banderillas. Excitam o touro, ferem-no, e vemos o seu sangue começar a jorrar enquanto a multidão torce alucinadamente contra o animal. Minha amiga e eu nos entreolhamos e percebemos o tamanho da crueldade a que estávamos assistindo. Não chegamos a ver quando o toureiro desfecharia o golpe de misericórdia e mataria o pobre animal com a espada. Saímos antes, enojadas, decepcionadas… demorou muito para apagarmos as lembranças daquela tarde, que terminou como um pesadelo.

A imagem desse touro sangrando enquanto os espanhóis gritavam voltou à minha mente quando vi o que se passou com Vinny Jr no jogo do Real Madrid contra o Valencia. Já é o nono ataque racista que esse jovem de 22 anos recebe e sofre sozinho, no meio do campo de futebol, como um touro em uma arena. As pessoas que deveriam protegê-lo, punir os culpados, se omitem numa total negação ao que realmente importa. Foram ferindo o menino negro, grande talento brasileiro, levando-o a perder a cabeça, irritando-o com ofensas como se as mesmas fossem banderillas espetadas no touro a ser morto. Mas doem muito mais. Aparecem sempre, de novo e de novo, como se a cor da pele o tornasse resistente a ofensas tão grosseiras, tão insuportavelmente cruéis.

Na Espanha existe o mito do indulto, que é quando a torcida da Plaza de Toros se volta a favor do touro e pede que esse seja salvo da espada do toureiro.

Foi isso que o Brasil fez ontem. Através dos ministros da Igualdade Racial, do Itamaraty, do Esporte, dos Direitos Humanos, da imprensa toda e das redes sociais, nós brasileiros, pedimos indulto ao nosso menino. Me orgulhei do meu país: temos muitos problemas, o racismo também grassa por aqui, mas temos leis e políticas públicas cada vez mais eficientes para corrigir esse absurdo que foi imposto ao povo negro por séculos a fio.

Que não seja apenas nesse episódio internacional que nos voltemos contra o racismo; que seja em cada esquina, em cada estabelecimento comercial, em cada escola, em cada canto…” Não basta não sermos racistas; temos que ser antirracistas” para que menos touros manchem a pureza de nosso solo com seu sangue. Que por sinal, é da mesma cor, seja qual for a raça…

Eliane Sanches Querino

É diretora executiva da Know How. Professora de inglês e empresária. É líder e uma das fundadoras do Grupo Mulheres do Brasil.

2 Comentários

  1. Parabéns Eliane Quirino por escrever tão bem os sentimentos do nosso povo negro, por retratar através desta analogia o sofrimento deste garoto negro Vinny Jr. que vem sofrendo a tanto tempo com o racismo do povo espanhol. É muito gratificante e importante ver pessoas brancas bem sucedidas como você na luta antirracista.

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