Arquiteturas efêmeras
A destruição paulatina ou mesmo repentina de lugares da memória por simulacros em busca de uma imaginária “modernização” que busca representar o “progresso” de sua elite é uma prática cotidiana e recorrente nas cidades brasileiras. Franca é especialista nesse tipo de intervenção. A recente “deforma” da Praça Nossa Senhora da Conceição em andamento é um exemplo acabado dessa matriz ideológica movida desde sempre pelas chamadas “forças vivas” da cidade como a poderosa Associação Comercial e Industrial de Franca – ACIF que, ao invés de chamar para si a elaboração de um programa de gestão e investimentos para o centro da cidade, onde estão muitos de seus associados, prefere bancar um projeto canhestro de reforma das instalações físicas de duas praças sem atentar para a necessária articulação entre urbanismo e outras políticas públicas e ainda usar recursos públicos para a obra, sempre malfeitas por conta da licitação de “menor preço”.
No entanto, mesmo sabendo que a arquitetura e o urbanismo das cidades possuem dinâmicas próprias, quase sempre efêmeros em países do como o nosso, tenho percebido que esse tipo de ideia está se esparramando para muito além dessas instituições e do próprio poder público, incapazes de ver que ao destruir o tecido da memória, os lugares da vida em comum, inclusive de consumo, vão se tornando pasteurizados, sem identidade ou menos atraentes, levando água ao moinho dos shopping centers, o contrário do que deveriam incentivar e promover em defesa de seus próprios negócios e atividades.
Percebi outro exemplo desse tipo de tratamento “moderno sem causa” do lugar como associado desde o início deste século no clube do SESI em Franca. Equipamento de cultura, esporte e lazer mantido pelo empresariado, construído e mantido com recursos do chamado sistema “S” arrecadado compulsoriamente na folha de pagamento dos trabalhadores, o clube do SESI foi inaugurado no início dos anos 1980 em uma grande área pública doada pela Prefeitura na gestão de Maurício Sandoval, no alto da Santa Cruz. Projeto do arquiteto Jaguanhara Ramos com Waldemar Menegatti e Carlos Vieira, tinha uma bela escola térrea, ginásio de esportes, teatro, quadras esportivas, piscinas, pista de atletismo e locais para cursos e oficinas. Foi muito bem construído, o projeto de arquitetura era muito bom e traduzia bem o espírito daqueles tempos.
A gestão do equipamento muda ao longo dos tempos e cada gestor quer imprimir uma marca, como no poder público. Além disso, as demandas dos usuários mudam. Percebi que, a cada período em que nos afastávamos do clube por conta dos três meses de frio, ao voltar, havia modificações. O paisagismo original foi sendo lentamente removido, árvores retiradas e não substituídas. Gradis divisórios de espaços começaram a ser removidos e outros introduzidos. A cancha de bocha desapareceu para dar lugar a uma academia, novos tempos em que até os idosos começaram a marombar. Logo a academia, antes aberta ao vento, foi toda fechada com vidro temperado escurecido e, óbvio, teve que ser climatizada e iluminada artificialmente. O envelopamento periódico dos vidros com imagens foi questão de tempo. A cada dois, três anos, trocam todos os aparelhos, imagino que sua vida útil não esteja esgotada. A reforma e adaptação dos sanitários aos deficientes motivaram a substituição de todos os caixilhos de alumínio por vidro temperado.
A portaria foi reformulada, ampliando seu telhado. Um pergolado externo de madeira com bancos junto às piscinas foi implantado e, pouco tempo depois, extirpado sem dó. A cantina fechou e aguarda há meses para reabrir porque, mesmo em ótimo estado, está passando por mais uma reforma. A antiga escola térrea foi substituída por outro excelente edifício em vários pavimentos, mas restaram alguns dos galpões da escola antiga. São de ótima arquitetura e construção. No entanto, os empresários que gerem o SESI, sempre tão críticos do “Estado perdulário”, mantém os edifícios fechados apenas para guardar móveis velhos, enquanto o Projeto Guri mantido pelos mesmos empresários paga aluguel. Pior, chegaram a dizer que poderiam ser demolidos para dar lugar a um estacionamento, o que seria o cúmulo.
Talvez tais constantes mudanças possam ser explicadas apenas pela necessidade de melhoria e manutenção com o passar do tempo. Mas acho que o emblema dessa ideologia que muda sem necessidade, apenas por mudar e exercer o poder de gastar recursos, é a esdrúxula decisão de fechar os muros do equipamento. A bela solução do projeto tinha placas de concreto pré-moldados em “V” com pequenos intervalos, deixando o lugar à vista, integrando espaço interno e externo com maciços de arbustos. Solução simples, econômica e bonita. A gestão atual decidiu fechar os vãos com concreto e de forma tão rudimentar quanto incompreensível. Quando os cachorros começaram a dar as cartas e a causa a eleger representantes políticos, o SESI adotou alguns cães de rua e encheu o clube com cartazes “pet friendly”. Parece que o namoro acabou. Segundo a rádio-corredor no clube, a decisão de fechar as placas de concreto e retirar arbustos foi tomada porque cães de rua estavam “invadindo” o clube. Para conter os animais, gastos em concreto armado e degradação da arquitetura original. Acho que ficou feio pra caramba, mas quem sou eu a não ser um velho e ultrapassado arquiteto “resmungão”?
Mauro Ferreira é arquiteto e urbanista, professor voluntário de planejamento urbano no Programa de Mestrado em Políticas Públicas da UNESP-Franca