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Sonhos pós eleições

Passadas as eleições municipais, a democracia venceu novamente, ao menos não se escuta mais aquela algaravia besta sobre voto impresso. Os eleitores votaram livremente nas urnas eletrônicas e escolheram seus preferidos ou os “menos piores”. Franca resolveu ficar com Alexandre Ferreira (MDB), reeleito prefeito. Mas as urnas enviaram um recado claro ao incumbente: dois em cada três eleitores aptos da cidade não o apoiaram.

Alexandre graduou-se pela escola política de Sidnei Rocha com destaque nas disciplinas “despotismo absolutista” e “gestão sem imaginação”, daqueles governantes imperiais, autoritários, autossuficientes e pouco afeitos à crítica e sugestões que não venham do seu próprio círculo político. Manteve um aceno ao bolsonarismo-raiz deixando no cargo como um Rei da Inglaterra (reina mas não governa) o inexpressivo vice-prefeito, um dos mais fracos da história local. Por outro lado, se entendeu o recado dos eleitores e almeja novos voos, terá que mudar alguma coisa do seu novo governo, tendo sinalizado que pretende acatar algumas propostas da oposição à esquerda.

Dito isso, só por ser um francano radical, daqueles que querem o melhor para sua cidade e otimista incorrigível, me atrevo novamente a sugerir coisas para a Prefeitura fazer. Se não há um projeto de cidade como seria desejável, ao menos sonhos podem ser desejados. A começar pelo papel da arquitetura e do urbanismo como instrumento de qualidade de vida e de enfrentamento à crise climática, deixando o negacionismo de seu governo de lado. Se educação, saúde e salários consomem a quase totalidade do orçamento, alguns outros eixos de ação são prioritários: crise climática, cultura e lazer, idosos e mobilidade.

Começo pela cultura. A Prefeitura tem financiado através de editais com recursos vindos do governo federal e do orçamento local, centenas de projetos culturais. Porém, não se preocupa em obter a máxima eficiência dos investimentos através de uma articulação com os artistas no sentido de criar uma cidade com arte para todos. Não há nenhuma preocupação da Prefeitura em organizar e divulgar massivamente uma agenda e locais de eventos de música, teatro, literatura, artes visuais. Tudo fica a cargo do próprio artista financiado e a desarticulação reduz a potência da arte produzida e do acesso das pessoas a ela. Não há dificuldade em organizar isso, basta um mínimo de interesse e competência no setor.

A produção cultural, cada vez maior (o último edital da Prefeitura apontou 236 projetos participantes, um recorde), mostra a pujança e a diversidade cultural local, foco de economia criativa, de geração de emprego e renda, de criação e inovação, que o governo poderia aproveitar melhor sem gastos adicionais. Deveria ouvir mais o Conselho Municipal de Cultura e não ignorá-lo como fez até agora.

Neste aspecto, a ideia aventada pelo prefeito de extinguir a FEAC e criar uma secretaria de Cultura só terá sentido se houver um claro entendimento que, dentre outras questões da cultura, a grave e desastrosa situação de várias edificações públicas de caráter histórico decorre de sua visão equivocada de não reconhecer a identidade da cidade, da inexistência de uma política municipal de preservação cultural e, ao mesmo tempo, da inexistência de um corpo técnico capacitado a sua condução. É preciso criar os cargos e contratar para o corpo permanente da Prefeitura profissionais competentes e preparados para lidar com a preservação do patrimônio. Projetar as intervenções necessárias e executar obras e serviços de restauração, fazer os planos museológicos, buscar financiamentos, tudo isso requer gente do ramo e permanente no serviço público, de modo que os trabalhos tenham continuidade independente do governo de plantão.

Os dados do censo do IBGE são claros: a cidade está envelhecendo, não só os edifícios. Somos cada vez mais idosos e vivemos mais. A cidade do futuro tem que estar preparada para esses usuários. Enfrentar essa questão exige uma política mais rápida e parruda que algumas “casas-dia”. É preciso que o Programa “Calçada Segura” não se resuma a passeios feitos às pressas em terrenos da Prefeitura com cimentados que se esfarelam. É preciso uma rápida e massiva produção de novas calçadas adaptadas, a começar pela região central, essencial para a mobilidade dos idosos.

Como na questão da cultura, a do esporte e lazer precisa prover também o acesso aos idosos, que passa pela ampliação da Rede CEPEL, mas é insuficiente. É preciso articular lazer, esporte e cultura nos bairros com atividades permanentes ao ar livre em grupo, criando hábitos saudáveis na população envelhecida. Franca tem cursos universitários que poderiam fornecer pessoal capacitado a baixo custo para uma ação inicial do gênero, que inclua cultura, esporte, lazer e saúde nos espaços livres de praças e parques, pois pesquisas indicam que vários problemas mentais mais graves dos idosos são motivados pela solidão.

Apesar do acesso à internet pelos idosos ter aumentado, o censo do IBGE mostra que são eles os que menos tem acesso e habilidades para utilizar seus recursos. O que nos remete à urgência de uma revolução digital da Prefeitura. O site é arcaico, ruim, pouco amigável, poucos são os serviços oferecidos digitalmente, nem aplicativo tem. A Prefeitura deveria buscar parcerias com as muitas empresas de tecnologia da cidade e prefeituras que mudaram esse panorama (como Recife e Curitiba) que poderiam melhorar e muito o ambiente de acesso aos serviços da Prefeitura, o ambiente de negócios e a transparência das políticas públicas locais. Alguém já tentou acesso ao Diário Oficial? Para procurar algo, tem que baixar as edições em PDF e sair caçando o assunto, é quase impossível achar algo, é baixa a transparência apesar do discurso oficial em contrário. Sem contar que até hoje, desde o mapa aerofotogramétrico de 1971, a Prefeitura não fez um recadastramento digital dos imóveis da cidade, perdendo receita e não podendo usar as informações para planejamento, um atraso só.

A questão social dos moradores de rua não tende a arrefecer, é uma situação que só vem se agravando nas maiores cidades por conta de vários fatores, dentre eles o fracasso e a hipocrisia da política de repressão às drogas. Para reduzir seus efeitos, é preciso um programa de gestão integrada da região central já prevista no Plano Diretor. Um programa dessa natureza teria várias frentes, é preciso construir uma política pública que junte as questões sociais e econômicas às físicas. Deixo as questões sociais para os especialistas, mas no plano físico passa por remodelar passeios para torná-los caminháveis, reduzir o uso de automóveis no centro, reduzir a poluição visual e fiscalizar a ocupação irregular dos espaços públicos, ampliar as atividades dos equipamentos públicos existentes de cultura, recuperar o patrimônio histórico e usar os edifícios públicos centrais hoje abandonados, usando esses espaços para montar uma rede de apoio aos trabalhadores precarizados de entregas, que vieram para ficar. E fazer com que o enorme parque imobiliário privado construído da região seja plenamente usado, recuperando o uso habitacional no centro, principalmente para idosos.

A proposta de usar o estádio Nhô Chico para um mercado popular teria que articular redução dos mercadores já instalados nas praças centrais, liberando-as aos seus usos de lazer e descanso. Ao mesmo tempo, parte do terreno deveria ser usado com habitação social para idosos, repovoando o centro, evitando que o antigo estádio seja subutilizado ou vire apenas um grande estacionamento para veículos particulares. Há experiências interessantes de prefeituras nessa linha, de edifícios para idosos que vivem em coletividades e compartilham vivências e atividades, pagando aluguel social.

É preciso também requalificar centros de bairros, com passeios e esquinas vivas, iniciativas simples e econômicas que podem mudar a cara do bairro, bem como as principais avenidas de bairros, implantando passeios, ciclovias e ciclofaixas de forma contínua e articulada, não como hoje, onde pedaços de ciclovias e de passeios são feitos e ficam subutilizados. A melhoria da mobilidade urbana é essencial para a cidade sustentável do futuro, tanto no que se refere ao trabalho de articular os diferentes modais (a pé, de bicicleta) ao transporte público que vai passar por uma licitação no próximo ano. É essencial que, mesmo ouvindo os usuários como diz que está fazendo, o prefeito também ouça técnicos especialistas em transporte de localidades que o fizeram com sucesso, setor técnico que inexiste na Prefeitura. Renato Boareto, autor da exitosa proposta de reformulação do transporte coletivo em Franca no final dos anos 1990 vive em Ribeirão Preto e tem excepcional currículo para fazer isso. Que o prefeito ouse inovar e use o novo contrato de ônibus para reduzir as emissões de carbono e aumentar a qualidade e quantidade de pessoas usando o transporte público.

Pra finalizar, a crise climática está aí. A Prefeitura não pode mais fingir que nada está acontecendo. A mudança afeta a frequência das precipitações durante tempestades e chuvas repentinas. Há ventos muito acima dos normais, causando a queda de árvores, interrupções no fornecimento de energia elétrica, destelhamentos que desabrigam pessoas, deslizamentos de terra e enchentes, tornando indispensável estruturar uma defesa civil mais forte para atuar nas áreas de risco mapeadas. Por conta da topografia de Franca, as enchentes são de curta duração, afetando principalmente as avenidas de fundo de vale dos córregos do Cubatão, Espraiado e Bagres. As soluções de engenharia previstas até agora (aumento da vazão dos canais) ainda são inacessíveis ao orçamento local, é preciso fazer várias intervenções mais simples e econômicas – como reduzir o lixo nas ruas, aumentar infiltração de água nas áreas públicas e calçadas, manter galerias pluviais limpas e ampliar rapidamente a retenção de água nas edificações existentes – para minimizar os problemas até uma solução mais duradoura ser possível, incluindo reservatórios de retenção ainda possíveis na bacia do Espraiado ou a ações tipo “cidade-esponja”.

A outra questão ambiental é a preservação da bacia do Rio Canoas. Se render-se ao poder do setor imobiliário “troglodita”, fator indispensável à sobrevivência de Franca estará em jogo: a água potável. Antes de abrir qualquer possibilidade de ocupação da bacia a esses setores mais atrasados do capital imobiliário, a Prefeitura deveria liderar uma solução definitiva para o passivo ambiental provocado pela ocupação desordenada de loteamentos de chácaras na região. Ao mesmo tempo, promover a ocupação ordenada dos 40 mil terrenos vagos e 22 mil construções desocupadas existentes na cidade, além de enormes glebas rurais ainda vazias dentro da mancha urbana existente. Como escreveram e cantaram Milton, Lô e Márcio Borges, sonhos não envelhecem.

Mauro Ferreira é doutor em Arquitetura e Urbanismo, professor voluntário do mestrado em Políticas Públicas da UNESP-Franca.

Mauro Ferreira

É arquiteto e urbanista.

4 Comentários

  1. Parabéns, Mauro, sua visão e experiência, seria REALIZAÇÕES DOS SONHOS, pra NOSSA FRANCA QUERIDA. Além de mostrar todas as dificuldades, trás a solução. QUE PENA QUE VOCÊ NÃO ESTÁ NO COMANDO.

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