Verdadeiras obras de arte
Por Rita Mozetti
Como escolher uma obra de arte ideal? Uma obra que além de despertar emoções, seja capaz de provocar inquietações, reflexões e que leve a conhecer outras culturas, idiomas, épocas distantes e que além de se tornar especial, seja a primeira de muitas. Escolhemos obras de arte pelo encanto que provocam. Assim, iniciei por Dom Quixote de Miguel de Cervantes. O cenário, as personagens e a mistura da realidade com fantasia provocam o imaginário e despertam a criticidade e criatividade.
Apresentei Dom Quixote para estudantes do 5º ano do ensino fundamental, uma obra que não fazia, até então, parte do universo literário deles. Dos Contos de Fadas para a leitura literária brasileira e mundial, um grande desafio. O encanto talvez tenha começado por Quixote ser apaixonado pelos livros, por ter uma imensa biblioteca e por enxergar na velha armadura encontrada no porão uma maneira de dar mais vida a vida e realizar uma grande viagem pelo mundo, sempre destemido e corajoso, enxergava gigantes onde eram, simplesmente, moinhos de vento e não os temia. Os livros realizaram os sonhos de Quixote.
E era exatamente isso que eu desejava para aquele ano letivo de 2019, sonhos, ações e ousadia, por isso, de mãos dadas com Cervantes lotamos um carrinho de supermercado com muitas obras de arte e saímos ruas afora levando arte para quem cruzasse nosso caminho. Eu e meus trinta e três fiéis escudeiros e escudeiras, meus alunos e alunas, munidos de um megafone anunciávamos: “Olha o carrinho da leitura passando na sua rua”. O primeiro a desfrutar de nossa arte, foi o senhor que, todos os dias, varria a rua frente à escola. Ele interrompeu o trabalho, algumas folhas de árvore já juntinhas, insistiram em voar e escaparam da vassoura, mas o “senhor da coleta seletiva” (o qual, infelizmente, não me recordo o nome) escolheu, entre muitas, duas obras de arte e as retirou do carrinho: “Vou levar uma para cada filho”.
No semáforo fizemos um pedágio, ao sinal vermelho, o trânsito parava e junto com as famílias dos alunos, íamos até os motoristas e uma obra de arte era oferecida. Alguns recusaram acenando um não. Outros pegavam, sorriam e seguiam, outros perguntavam: “Quanto é?”. Demoravam a entender que nossas obras de arte eram gratuitas. Teve uma senhora que por ali caminhava e escolheu uma obra de Lobato em meio a tantas outras dentro do carrinho e nos reuniu em torno dela para nos contar histórias da infância.
E a cada ação e aventura com nosso “carrinho da leitura”, fomos percebendo que algo mágico acontecia não somente conosco, “distribuidores” de arte, mas com todos aqueles que encontrávamos pelo caminho. Fomos transformados e transformávamos. Éramos tocados e tocávamos. Percebemos que, quanto mais arte distribuíamos, mais conhecimento e saberes nos eram proporcionados.
Junto a Quixote, chegaram também Romeu e Julieta, Os Miseráveis, Iracema, O Guarani… Junto a Cervantes, José de Alencar, Shakespeare, Exupéry… Obras de arte que nos levaram ao Prêmio Educador Nota Dez de 2020, o maior e mais importante da Educação Básica.
A literatura é arte e como toda arte humaniza, emociona, faz com que vivenciemos outras culturas, costumes e experiências. Portanto, enquanto arte, precisa ir além do ler por ler, do ler para escrever resumos ou fichas técnicas de leitura, mas o ler para apreciar, dialogar, argumentar, relacionar, discutir, refletir… Sim, livros são obras de arte, por isso devem ser apreciados. Uma obra não termina ao fim da última página, mas permanece viva em cada leitor.
Sempre escolhemos um livro, assim como escolhemos toda obra de arte, com cuidado, olhar atento aos detalhes, aquele que nos identificamos com o personagem, com o autor ou com o momento em que estamos vivendo seja ele de conflito, medo, anseios, alegrias…
A leitura literária não é para dizer o que aprendemos com a obra, não deve ter caráter moralizante. A literatura é o ler para apreciar. Leitura deve ser assunto da família, assunto das rodas de amigos, assunto sempre! Talvez seja por isso que temos o dia nacional e internacional do Livro.
Quantos de nós já nos sentimos representados por algum enredo ou pela decisão que o personagem tomou e que era exatamente uma decisão que deveríamos ter ou não tomado na vida real? Sim, em alguns momentos somos Dons Quixotes, ora ou outra misturar fantasia e realidade talvez seja a solução para o enfrentamento do viver, nem que seja por poucos minutos. A literatura deve se tornar uma atitude de vida, um hábito.
Apreciamos obras de Monet, Portinari, Da Vinci, Tarsila, assim como apreciamos obras de Cecília Meireles, Clarice Lispector, Carolina Maria de Jesus… Literatura é a arte da palavra. Da palavra que humaniza, que inclui, que traz à tona a realidade possível de ser transformada.
Dia desses, num momento proporcionado pelo Prêmio Educador Nota 10, tive o privilégio de apresentar meu trabalho para o Professor Lino de Macedo, ao final de minha fala, ele disse: “O que dizer para você e seus alunos? Parafraseando Castro Alves digo que: “Benditos aqueles que semeiam livros e fazem o povo pensar”. Privilégio que a literatura me proporcionou.
Um “Pé de Livros”, de maneira lúdica, na pracinha da escola foi plantado. Uma árvore cheia de livros pendurados, que eram colhidos, lidos, apreciados, discutidos e socializados. À sombra deste pé de livros, amigos se reuniam para apreciar os “frutos” colhidos. Ali, crianças e adultos despertaram para a importância da leitura e muitos aprenderam a ler e compreender o que liam, ali bem debaixo da árvore. Uma comunidade leitora foi criada.
O “Pé de Livros entre Amigos”, trouxe para minha vida, muitas conquistas, um troféu (lindo, pesado e por anos sonhado) e uma grande responsabilidade: semear a leitura literária por todos os cantinhos. Muitos pés de livros já estão sendo plantados Brasil afora. A semente dando frutos!
Sejamos semeadores de grandes obras de arte, os livros!
Rita Mozetti é professora da rede pública, tutora de Pedagogia, Gestora da rede municipal, pedagoga, mestra em Desenvolvimento Regional e doutoranda em Serviço Social pela Unesp e vencedora do Prêmio Educador Nota 10, o maior e mais importante prêmio da Educação Básica Brasileira criado pela Fundação Victor Civita.
Rita Mozetti.
À sombra desse pé de livro, almas encontram descanso e espírito se enlevam, e deixam de ser folhas secas, levadas pelo vento da ignorância, da intolerância e da jactância. Poucos semeiam para milhões se fartarem do fruto da criação do Autor, que inspira autores.
Você é professora!
Obrigada, Dr Théo. Que bom ler seu comentário! Foi realmente um projeto transformador de vidas.