Franca 150 anos – Franca 200 anos o que mudou?
Por Atalie Rodrigues Alves
Convidada a escrever sobre os 200 anos de Franca numa visão feminina, o que me veio a mente foi falar de como foi ser mulher adolescente de uma família abastada da classe média numa cidade de interior conservadora e tranquila, então com oitenta mil habitantes.
Estudei do primário ao colegial numa escola pública, o Torquato Caleiro, que chamávamos de IETC. As classes eram mistas, mas as meninas sentavam nas carteiras da frente e os meninos atrás. No pátio também havia essa separação, não sei se forçada ou espontânea, as meninas de um lado e os meninos em outro, hoje um fato inimaginável. Morávamos a poucos quarteirões da escola e íamos a pé, sempre em turma, geralmente composta só por meninas. Eu tinha na época, anos 1960 , começo dos anos 70, quatro irmãs que se somavam às vizinhas do bairro da Cidade Nova. Nossa vida era no bairro, ir às casas de colegas vizinhas para brincar ou conversar, andávamos de bicicleta nas calçadas mesmo, ficávamos conversando nos portões das casas com muretas baixas, os muros altos de hoje com cercas e grades não existiam. A insegurança era pequena, às vezes escutávamos alguns homens importunando, mas não passava disso. Não frequentamos muito o centro da cidade. Os meninos, ao contrário, morassem ou não no centro, iam pra toda parte, tinham muito mais liberdade que as meninas desde pequenos.
Nosso lazer de férias na cidade era o Clube dos Bagres, onde aprendemos a nadar na piscina média até ter condições de ir pra piscina grande e até arriscar até saltar do trampolim. A moda era deitar no piso de ladrilhos vermelhos e ficar como “jacarés” tomando sol. Nada de protetor solar, ao contrário, algumas usavam até urucum pra ver se ficavam da cor do pecado. Ali no Clube encontrávamos os meninos. Ali começaram muitos namoros, senão começavam no próprio IETC era no Clube dos Bagres ou na AEC.
A Associação dos Empregados do Comércio (AEC), um prédio modernista inovador que deveria ter sido preservado para a história da cidade, assim como o Clube dos Bagres, era o hit desde os anos 1950, quando foi inaugurado. Aos domingos havia uma “brincadeira dançante” com som ao vivo, que em geral começávamos a frequentar a partir dos 14 anos. Uma curiosidade: eram as mães que levavam as filhas mais velhas até começarem a namorar e ganhar o alvará pra irem sozinhas. Quem tinha irmãos ou irmãs mais velhos eram vigiadas e controladas por eles. O esquema pra dançar era o rapaz “tirar” ou convidar a moça pra dançar. Muitos levavam “tábua”, como chamávamos a recusa de uma dança. As mães acompanhantes se enturmavam com as outras e até com os mais jovens.
Outro lugar de lazer eram os cinemas. Quem já namorava encontrava com o namorado na porta do cinema, era praxe o jovem pagar as entradas, mas alguns combinavam de encontrar dentro do cinema se não tinham dinheiro pra pagar a entrada pra namorada. Em geral íamos aos filmes livres, mas as vezes surgiam filmes para maiores de 15 anos e não conseguíamos entrar, ficava sempre alguém conferindo a identidade e a idade do frequentador. Uma vez fomos com dona Daicy, esposa do Pedroca e mãe de minha amiga Cristina Fuentes, que nos levou ao cine Odeon para assistirmos um filme que mostrava como era o corpo feminino por fora e dentro, não lembro se era um filme didático ou documentário. Só com ela conseguimos assistir o filme. Quando achávamos que íamos ser barradas nos filmes dos dois cinemas do centro, o São Luis e Odeon, nós que morávamos na Cidade Nova íamos ao cine Avenida e lá conseguíamos assistir aos filmes proibidos para nossa idade. Um que assistimos e nos deixou chocadas, foi o filme “Um homem chamado cavalo”, filme dos anos 70 que contava a história de um americano branco e loiro que vai viver entre os índios e é torturado por eles preso em garras e içado com cordas, ficando dependurado. Seria uma vingança aos brancos que dizimaram os índios americanos?
Nessa época era normal estudar em uma escola pública, em geral tinham boa qualidade de ensino. Minha mãe, que vinha de família de pequenos sitiantes, veio de Ituverava para estudar em escola pública. Ela priorizava os nossos estudos, dizia que era a herança que ia nos deixar. Existiam os colégios religiosos, o Marista para os meninos e o das freiras, o Lourdes, para as meninas de classe mais alta, mas esses colégios foram fechados exatamente no início dos anos 70 e os estudantes acabaram indo para as escolas públicas. Se a família tinha condição financeira, era praxe as meninas estudarem piano, pois violão não era “instrumento para as mulheres”. Mesmo assim, nos anos 1950 as pianistas Lúcia Garcetti e Margarida Pucci fizeram serenatas tocando violão! No terceiro colegial, muitas de nós fizemos cursinhos pré-vestibulares em Franca e lembro que fui a primeira mulher da minha geração na família Rodrigues Alves a estudar fora de Franca, com o apoio de meus pais, sobretudo de minha mãe.
Filhas de pais católicos, tínhamos a obrigação de ir a missa aos domingos. Neste período foram criados e organizados vários grupos de adolescentes, sempre comandados por um casal católico. Frequentei o “Grupo Garimpeiros” coordenado pela Lolita (ainda hoje muito ativa, criadora do Halel) e o seu marido Mauro Silveira. As reuniões aconteciam toda semana na casa de um dos integrantes, em geral uns quinze adolescentes. Era meio que um terapia em grupo voltada ao cristianismo, cada participante contava algo de sua experiência que julgava ser um exemplo cristão e discutíamos assuntos polêmicos como as drogas e até mesmo sexo, sempre moderados pelo casal tutor. As reuniões terminavam com a turma, em geral os meninos, tocando violão e cantando músicas populares.
Assim era a mulher adolescente há 50 anos. E na Franca dos 200 anos, a mulher adolescente soube manter as conquistas e abriu novas frentes de possibilidades? Mesmo assim ainda falta muito a conquistar.
Atalie Rodrigues Alves é artista plástica – aquarelista, gravadora, pintora, desenhista – formada pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo. É arte-educadora e sócia fundadora do Laboratório das Artes
Esse texto faz parte da série "O que elas têm a dizer" em que escritoras de Franca homenageiam a cidade pelos 200 anos, comemorados no próximo dia 28 de novembro. Será um texto por dia, até o final do mês, de crônica, conto, ensaio, poesia… escrito por mulheres. Se você também quiser participar, envie seu texto para solveloso2008@hotmail.com indicando no assunto: texto para homenagear Franca. Ficaremos felizes com todas participações. Soraia Veloso, escritora e francana de coração, é a idealizadora do projeto.
Texto lindo,me fez viajar num tempo em que as coisas eram boas e bem diferentes de hoje.
Parabéns! 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻🫂🌹🩵