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Disney faz homenagem tardia e parcial no centenário de Stan Lee

Documentário relembra a vida do cocriador dos famosos heróis dos quadrinhos e toca de leve em uma das maiores polêmicas de sua carreira

O documentário Stan Lee, disponível no Disney+ desde 16 de junho, chega atrasado para a festa de 100 anos do lendário roteirista e editor de quadrinhos da Marvel. Se estivesse vivo, Lee teria chegado a esta idade em 28 de dezembro do ano passado – ele faleceu em 2018, aos 95 anos.

Stanley Martin Lieber, seu nome de batismo, começou a trabalhar na Marvel (na época, chamada Timely Comics) em 1939, aos 17 anos, como uma espécie de “faz-tudo”. Dois anos depois, foi promovido a editor por pura falta de opção do dono da editora, um parente distante chamado Martin Goodman.

Nesta função, enfrentou praticamente sozinho alguns dos momentos mais dramáticos da indústria de quadrinhos, como a drástica queda da popularidade dos super-heróis em meados dos anos 1940 e a caça às bruxas dos anos 1950. Até que, em 1961, em parceria de um colaborador de longa data, o artista Jack Kirby, lançou a revista do Quarteto Fantástico.

A publicação foi um sucesso, e a ela se seguiram a estreia do Homem-Formiga, Hulk, Homem-Aranha, Thor, Homem de Ferro e muitos outros heróis que, décadas depois, enchem os cofres da Disney com bilheterias de cinema bilionárias.


Um lado da história

Stan Lee é narrado em primeira pessoa a partir de áudios e entrevistas dadas por Lee ao longo de sua vida. Portanto, como numa autobiografia, o documentário não pode ser tomado como expressão total da verdade, uma vez que apresenta apenas um lado da história: o dele.

Uma das maiores controvérsias da carreira de Stan Lee reside justamente na paternidade daqueles personagens. Seus dois principais colaboradores – os artistas Kirby e Steve Ditko – reclamam de o roteirista clamar para si o crédito exclusivo por tais criações.

Em algumas passagens do documentário, ele parece dar razão à queixa dos colegas ao proferir frases como “quando eu criei…” ou “eu tive a ideia…”. Vale lembrar que em diversas outras entrevistas, não inseridas do programa, Lee foi mais humilde e assumiu a relevante participação de seus colaboradores na criação e desenvolvimento dos heróis.

Polêmica

Enquanto homenagem, Stan Lee não se presta a aprofundar esta polêmica, mas também não foge completamente dela. Em um momento, o editor narra seu debate com Ditko se o crédito da criação deveria ser atribuído a quem teve a ideia original ou quem a concretizou no papel. Em outra, o programa expõe uma discussão ao vivo entre Lee e Kirby, educada, mas firme, durante programa de rádio dos anos 1980.

Uma prova de que esta polêmica está longe de terminar está na carta aberta à Disney+ na qual Neal Kirby, filho de Jack, reclama do caráter ególatra do documentário e do destaque que Lee sempre recebeu. Diz ele em um trecho:

Stan Lee teve a sorte de ter acesso ao megafone corporativo e à mídia, usando isso para criar seu próprio mito como criador do panteão da Marvel. Ele fez de si mesmo a voz da Marvel.

A cara da Marvel

De fato, nos tempos áureos da Marvel, Lee se tornou o “cartão de visita” da editora. Participou de entrevistas, deu palestras sobre quadrinhos em universidades, assinou uma coluna nos gibis, emprestou seus status a ações promocionais (como um fã-clube e uma coleção de selos) e imortalizou as expressões “Excelsior”, “Nuff Said” (“tenho dito”, em tradução livre) e “True Believers” (“fãs fiéis”).

Quanto a isso, não há muito do que seus detratores possam reclamar. Em primeiro lugar, Lee era um showman, um ator nato que soube como poucos encarnar um papel. Haja vista que tão logo ele se tornou uma figura conhecida, trocou a imagem do editor sério, de cara limpa, calvo e roupas sociais pela persona do editor dinâmico, que se vestia na moda, usava peruca (depois implante capilar), óculos escuros e um farto bigode.

Em segundo lugar, ele era o editor, portanto o responsável final por qualquer história que chegasse às bancas. Por fim, os demais que poderiam assumir o papel de porta-voz da Marvel – Kirby, Dikto e até seu proprietário, Goodman – ou eram avessos a entrevistas ou não tinham 10% do carisma de Lee – em alguns casos, ambas as alternativas.

Lee abraçou com indisfarçável alegria e orgulho a cara pública de um processo criativo que envolvia toda uma equipe, e soube capitalizar isso em benefício próprio. É esta a imagem que foi legada às gerações seguintes por meio das numerosas participações especiais que ele viria a fazer nos filmes dos super-heróis da Marvel.

O documentário termina lindamente com um discurso de Lee como convidado da cerimônia formatura da Universidade da Califórnia, em 2017, uma de usas últimas aparições públicas. Enquanto o corpo acusava a passagem do tempo, a mente daquele homem de 95 anos ainda se mostrava afiada e conseguia tirar risos da jovem plateia.

Ele conclui sua fala com um conselho que, sem dúvida, usou para si próprio: “Se você tem uma ideia que acha realmente boa, não deixe algum idiota o convencer do contrário (…). Siga seu coração. Seja o que for, dê o seu melhor. Você ficará feliz por ter feito isso”.

Para saber mais

Para quem quiser se aprofundar na vida e carreira de Stan Lee, existem bons livros à disposição. Incrível, Fantástico, Inacreditável (Novo Século, R$ 59,90) é uma biografia em quadrinhos que padece da mesma imparcialidade do discurso em primeira pessoa documentário da Disney+. Já Invencível: A Ascensão e Queda de Stan Lee (Globo Livros, R$ 89,90) vai no sentido totalmente oposto e faz o que pode para detratar Stan Lee como pessoa e profissional.

Entre estes dois extremos está o livro Senhor Maravilha, do pesquisador, editor e roteirista brasileiro Roberto Guedes. Fã assumido de Stan Lee, o autor faz um bom trabalho de apuração e contextualização, resultando numa biografia equilibrada e informativa.

Jota Silvestre

É apaixonado por cultura pop, é jornalista especializado em cinema, séries, animação e histórias em quadrinhos, com mais de 15 anos de experiência em publicações especializadas.

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