Você tem sede de quê?
Conheça a história do francano Samuel Salomão, um Engenheiro de Produção que trabalha com produção de cervejas artesanais no Canadá
Samuel Salomão é um apaixonado por cervejas especiais. Não somente como consumidor, mas como produtor.
Formado em Engenharia de produção pela UFSCar e também em Finanças Corporativas, trabalhou na área de Engenharia e Gestão de Projetos, respectivamente, nas multinacionais Sandvik (sueca, no ramo de mineração) e na FedEx (americana de transporte e logística), baseadas em São Paulo.
Em 2012, uma janela diferente se abriu: fez um curso introdutório de cerveja caseira. “Apesar desse percurso anterior, para mim, fazer cerveja era o que me inspirava de verdade. Aprendi muito por conta própria e fazia diversas cervejas de estilos diferentes, com pequenas melhorias nos processos a cada nova tentativa. Éramos elogiados pelas cervejas que fabricávamos e isso me dava uma sensação muito boa de dever cumprido, o que não acontecia com muita frequência no meu trabalho de escritório. Resolvi que gostaria de uma mudança na minha vida profissional também, e daí veio a ideia de seguir esse sonho de trabalhar com cerveja”, conta Samuel, sobre o início de seus estudos e a guinada nessa área.
Em seu caráter de bebida milenar, estima-se que a cerveja surgiu na mesma época que o vinho, entre 10.000 e 6.000 a.C., na Ásia e Oriente Médio, com evidências comprovadas em torno de 3400 a.C. “Claro que não da mesma forma que consumimos hoje. O vinho era feito de misturas de fermentados de uva com frutas silvestres e mel, e a cerveja de grãos diversos, não apenas de cevada e trigo, como na maioria dos casos de hoje. Registros históricos colocam a cerveja e o vinho como consumo central de civilizações como os Sumérios e Egípcios. Os Egípcios, inclusive, veneravam divindades que representavam cerveja e vinho, assim como muitas outras civilizações que vieram posteriormente. Nos dias de hoje pouco se dá importância ao caráter alimentar dessas bebidas, mas no passado, época em que não havia água potável para consumo, e que, mesmo nas melhores fontes disponíveis, era impossível assegurar que a água era de fato segura, livre de bactérias e patogênicos, as bebidas alcoólicas eram de suma importância na alimentação do ser humano”, explica ele.
Expert no assunto, Samuel Salomão segue nos dando uma aula sobre qualidade de cervejas: “quando pensamos em cerveja, somos acostumados a pensar sempre na Lager/Pilsen clara com o teor alcoólico padrão de 5%, mas existem mais de 150 estilos de cerveja catalogados pelas principais organizações mundo afora. Estilos que vão desde baixo teor alcoólico, como 3-3.5% (das Mild Ales ou Berliner Weisse), até acima de 15% (como as saborosas Barley Wines); cores que variam desde o amarelo palha das lagers comuns, passando pelo dourado das Pilsens Tchecas tradicionais, o vermelho/âmbar das Red Ales, marrom das Brown Ales, ou até completamente preto, como Porters e Stouts. Tal qual o mundo do vinho, cervejas podem ser categorizadas como de mesa ou para degustação, e as últimas são sim consideradas mais nobres. Além disso, temos um universo de cervejas que são envelhecidas em barris de madeira, e com potencial de guarda. Colecionadores entusiastas desses estilos possuem adegas, assim como as de vinhos, com cervejas envelhecidas por anos e anos (muitas chegam a mais de 10 anos), verdadeiras raridades, com valor inestimável “.No Canadá ele se formou no ofício de “mestre cervejeiro” e trabalha numa grande indústria da bebida.
Samuel nos fala dos segredos da cervejaria enquanto ofício e gastronomia.
Folha de Franca – Como e por que surgiu o seu interesse por cervejas?
Samuel Salomão – Quando me dei conta de que a cerveja poderia ser muito mais do que a mais gelada, com menos gosto e mais fácil de beber, me encantei pela diversidade de sabores e possibilidades que poderia encontrar numa garrafa.
Passei a frequentar o mercado, sempre escolhendo aquela cerveja que ainda não havia experimentado. À época, o ‘boom’ de cervejas artesanais no Brasil mal havia começado, portanto comprava rótulos alemães, britânicos, belgas, o que havia disponível nas prateleiras.
Com o passar do tempo, algumas marcas brasileiras foram aparecendo, e as gôndolas do supermercado começaram a ficar pequenas para mim. Busquei bares e lojas especializadas, assim como assinaturas de cervejas especiais (em que te enviam rótulos diferentes a cada mês, de diversas partes do país e do mundo, um ótimo negócio).
Ao mesmo tempo, fui pesquisando sobre os estilos, a história das cervejas e escolas cervejeiras do mundo, as visões diferentes de cada região produtora, e me aprofundei cada vez mais.
Em São Paulo, junto com um amigo que compartilhava da curiosidade e deslumbramento por cervejas diferentes, fazíamos degustações, compartilhávamos de compras e novas marcas, até que um dia resolvemos fazer um curso introdutório de fabricação de cerveja caseira.
Apesar do curso não ter sido de particular qualidade, conseguimos absorver o suficiente para começar. A partir daí, posso dizer que a satisfação de produzir e beber sua própria cerveja, sua própria receita e a exploração das técnicas e dos sabores diversos que a cerveja artesanal possibilita me tomou por completo, era o que eu queria fazer sempre, minha vida fora do trabalho era fazer cerveja, beber cerveja e participar de eventos de cerveja.
No início de 2017, após me formar na pós, ingressei em um curso de Sommelier de Cervejas, e comecei a me envolver com a ideia de uma carreira na área. Já em 2018, com o impulso recebido de alguns amigos, de meus pais e minha irmã, decidi então que gostaria de perseguir a carreira profissional em cerveja.
Folha de Franca – Passeie, sinteticamente, pela história da cervejaria.
Samuel Salomão – Devido ao álcool presente e ao processo de fabricação, ao se esquentar o mosto e ferver a água, a cerveja era o produto mais seguro para o consumo humano e, por esse motivo, até mesmo crianças e adolescentes a consumiam, e isso foi constante por milênios. Chá e café também tem similar aplicação, porém só chegam a civilizações europeias numa história muito mais recente, em meados do século 17.
Por muito tempo, a cerveja era um fermentado meio sujo (turvo) de grãos, algo semelhante a uma sopa bem líquida, bastante nutritivo, com sabor mais adocicado e, às vezes azedo, muito diferente da cerveja moderna.
Era principalmente produzida em casa, nos caldeirões das famílias e era predominantemente produzida por mulheres. Há, inclusive, anedotas na história da cerveja (não comprovadas oficialmente, porém que fazem bastante sentido) que colocam o fato de que bruxas são representadas com caldeirões pelo motivo das donas de casa produzirem sua cerveja neles, ato distante dos homens, por centenas de anos.
A cerveja como a consumimos hoje só começa a tomar forma após a queda do Império Romano, nos monastérios europeus. Isso se dá com a introdução do lúpulo como ingrediente, que serve de conservante natural e traz o sabor amargo que conhecemos bem. Anterior ao uso do lúpulo, as cervejas eram adocicadas e levemente azedas.
Folha de Franca – Sua formação, Engenharia de Produção, parece se relacionar bem com o seu trabalho hoje, uma vez q cerveja é processo, não?
Samuel Salomão – Com certeza, há uma interface grande. Trabalho em uma indústria, onde existem diversos processos, não apenas de produção da cerveja, mas logística de ingredientes, empacotamento e despacho de produtos finalizados, planejamento e gestão dos horários da equipe e produção, layout da fábrica e tempos e movimentos.
Tudo isso faz parte do processo produtivo, e pode-se ter uma melhoria significativa com aplicação das técnicas que aprendi na minha formação.
Apesar de meu trabalho hoje ser de produzir a cerveja no chão de fábrica, creio que pude, sim, contribuir para o desenvolvimento e melhoria dos processos que realizamos.
Folha de Franca – Por que escolheu o Canadá para se formar nessa área?
Samuel Salomão – Internacionalmente, escolhi o Canadá por já ter uma certa simpatia pelo país e, dentre as opções de cursos que encontrei na Alemanha, EUA, Inglaterra e Bélgica, era o curso de maior duração total (2 anos, enquanto os outros eram condensados em 6 meses).
Ter uma experiência mais alongada fez sentido para mim, pois vinha de fora da indústria e me daria maior oportunidade de emprego no país, após formado. O Canadá tem políticas bem receptivas para imigrantes estudantes e trabalhadores que se formam em suas faculdades.
Além de todos os benefícios já citados, também era o curso com melhor custo-benefício, e com ótima reputação na América do Norte, tendo ganho diversos prêmios, inclusive nos EUA, por suas cervejas (todas as cervejas são produzidas pelos alunos, sob supervisão dos professores). A faculdade oferece um curso completo, com diploma reconhecido tanto pelo mercado cervejeiro, como no meio acadêmico, uma verdadeira graduação.
O programa se chama “Brewmaster and Brewery Operations Management” (algo como, em tradução livre, formação em “Mestre Cervejeiro e Gestão de Operações Cervejeiras”).
No processo de aplicação, também foi a faculdade com o melhor suporte ao aplicante internacional, tirando dúvidas e dando suporte para acomodações (além de tudo, tive a sorte de ter um brasileiro na chefia do departamento de aplicações internacionais do Niagara College, que me ajudou muito durante todo o processo).
Folha de Franca – O Canadá tem grande tradição nessa área?
Samuel Salomão – O Canadá, assim como os EUA, possuem uma tradição muito mais recente, e que foi impactada negativamente pela Lei Seca, que ocorreu tanto nos EUA quanto no Canadá nos anos 20.
Diversas cervejarias foram fechadas, outras jogadas para ilegalidade e suas tradições perdidas. Houve, de fato, um renascimento da cultura cervejeira na América do Norte após a volta à legalidade.
Os EUA estão na vanguarda do desenvolvimento das cervejas mais modernas encontradas nos dias de hoje. A Escola Americana (reconhecida como uma das 4 principais, ao lado das escolas Britânica, Tcheca/Alemã e Belga) é a mais flexível e progressista de todas, suas tradições e qualidades são fluidas, sempre perseguindo o novo mercado, o novo estilo, uma nova “tradição”.
O mercado de cervejas especiais do Canadá é mais recente, com maior influência da escola americana, mas também com raízes na britânica. Por ser mais recente, ainda há muito espaço para cervejarias especiais por aqui, a hegemonia das marcas mais comerciais ainda é grande e, por isso mesmo, o mercado de cervejas artesanais cresce bastante ano a ano, como no Brasil.
Folha de Franca – Que tipo de cerveja você produz?
Samuel Salomão – Trabalho numa cervejaria bem peculiar, que chamamos de ‘Contract Brewing’ (“Cervejaria de Contrato”), onde somente produzimos cervejas para outras cervejarias, com as receitas deles, adaptadas para o tamanho do nosso equipamento. Os clientes nos procuram pelo nosso maquinário avançado de produção e empacotamento e de nossa maior escala, principalmente para produzir sua cerveja em quantidades unitárias para venda nas gôndolas de diversas lojas de bebidas.
Para se ter uma ideia, boa parte dos nossos clientes possuem equipamentos para produção de lotes de 500 à 1.500 litros por vez, enquanto a nossa tem lote mínimo de 3.500 litros. Muitos clientes também sequer possuem cervejaria de fato, com equipamentos e capacidade produtiva, são empresas que apenas vendem suas marcas através da nossa produção.
Portanto, por essa particularidade, produzo o que estiver no nosso plano, o que foi vendido para nossos clientes. Em geral, os estilos de cerveja são os mais comuns que conhecemos: as Lagers/Pilsens claras e fáceis de beber (como uma Heineken ou Budweiser, por exemplo). Também temos diversos clientes de cerveja sem álcool, algo que se tornou comum no nosso portfólio, por termos nos especializado nesse segmento e por ser um produto em crescente demanda no mercado.
Apesar de geralmente os clientes produzirem essas cervejas mais populares conosco, também fazemos cervejas artesanais, dos estilos mais diversos, como India Pale Ales (cerveja mais amarga, com forte sabor e aroma de lúpulo) por exemplo.
É uma empresa relativamente nova, começou as operações no início de 2018. No início, apenas produzíamos cerveja, mas hoje já temos um portfólio mais diverso, incluindo bebidas alcóolicas prontas (como por exemplo hard soda, um tipo de refrigerante alcóolico), cidras, Seltzers e vinho enlatado.
Folha de Franca – Quais são as melhores cervejas?
Samuel Salomão – Não acredito que haja ‘melhor cerveja’, creio que cada ocasião irá chamar determinada cerveja. Há, também, a mudança do gosto pessoal, que acontece naturalmente durante a jornada de experimentação de novas marcas e estilo.
Por exemplo, hoje em dia, gosto muito de India Pale Ales americanas para beber nos dias mais quentes, por serem bem refrescantes e saborosas (adoro o sabor de lúpulos americanos), mas em uma comemoração ou ocasião especial, gosto de compartilhar uma Barley Wine ou Imperial Porter com amigos.
É importante entender que esses estilos se comportam de forma bem diferente no nosso paladar. Uma cerveja ‘grande’, como uma Barley Wine de 9%, é mais ‘difícil’ de beber, parece uma verdadeira refeição. Já uma Pilsen, como bem sabemos, pode ser bebida na mesma velocidade em que bebemos um copo d’água.
Folha de Franca – Pretende trabalhar nessa área no Brasil? Produção? Criar uma marca própria?
Samuel Salomão – O meu futuro no Brasil ainda é incerto, mas não quero tomar nenhuma decisão precipitada. Me sinto confortável em esperar a oportunidade certa para me reposicionar, seja na área de cerveja ou alguma outra aventura. Ainda sonho um dia em ter meu próprio negócio, e buscarei oportunidades, onde elas se apresentarem.
Criar a marca própria talvez seja o maior objetivo final, mas não tenho pressa e pode ser que me aventurarei em outras áreas antes disso.
Folha de Franca – Lembrei-me da “Odisseia”, de Homero, a história de Ulisses para lhe fazer essa pergunta anterior no tocante ao seu retorno à Ítaca, ooops! Franca!
Samuel Salomão – Creio que minha história foi bem menos conturbada que a de Ulisses. Apesar de ter de superar um ou outro contratempo, nada comparado a derrotar ciclopes e resistir a cantos de sereia, rs.
Sou muito feliz por ter tido a coragem de fazer o que fiz e não sei o que o futuro me reserva, mas as lições que aprendi nesta jornada serão essenciais na construção dessa nova etapa de minha vida, não tenho dúvida.
Tenho muito carinho por Franca, ainda tenho família e muitos amigos por aí, mas o Brasil é minha Ítaca. Se um dia eu puder escolher onde abrirei uma cervejaria, Franca estará no topo da lista, com certeza.
Muito bom! Parabéns, Vanessa, pelo artigo e parabéns ao Samuel por tanto conteúdo.
Obrigada, Vanessa! Muito boa esta oportunidade q deu para Samuel contar sobre sua jornada! Agradecida!!!
Excelente reportagem. São poucos os que podem dizer que fazem o que gostam. Parabéns Samuel.
Abraço, Félix!!! Saudades!
Completíssima a reportagem! Ficou show!
Abraço, Félix!!! Saudades!