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Passei a infância em um bairro da cidade

Por Bárbara Rosa

em um pequeno fragmento da cidade. em um pequeno recorte da cidade. em um pequeno trecho da cidade. em um pequeno pedaço da cidade. em um pequeno excerto da cidade.

a casa era popular, um projeto do governo de financiamento de moradias, dois quartos, uma sala, uma cozinha e um banheiro. as paredes eram beges, o bolor da umidade transpassava a cor. o telhado não tinha reboco, além dos tijolos, víamos a massa corrida com patas de cachorros. o que mais me incomodava era o banheiro, tinha um problema em que a descarga nunca funcionava, tomava banho com balde nos pés a fim de desentupir a privada. o quintal era improvisado de canos que eram as vigas que seguravam um telhado de eternit, no chão um buraco onde pai jogava as guimbas de cigarro.

me lembro dos vizinhos. os homens sofriam com a falta de trabalho, por causa disso bebiam, depois não arrumavam empregos, porque estavam bêbados. algumas mulheres costuravam sapatos pra fora, outras lavavam e passavam roupas pra fora. todas, sem exceção, aguentavam os choros dos filhos e dos maridos. o bairro parecia uma grande escadaria, onde cada degrau ficava uma rua, a chuva caía e alagava as casas de quem morava nos degraus mais baixos. minha casa era na segunda rua. uma vez, choveu tanto, mais tanto, mais tanto que os peixes que pai criava na caixa d’água saíram nadando pela guia, correram pela rua toda.

igual eu e as outras crianças, que corríamos até o pé rachar no asfalto. a verdadeira, felicidade era quando alguém te chamava para ir ao rapadão, à terra de erosão, fez o lugar preferido do bairro, com buracos para esconderijos, além de um descampado para o futebol. mesmo o bairro, tendo no seu primeiro nome Jardim, ali não se nascia uma florzinha. nada. arquitetos e engenheiros e ambientalistas e prefeitos e vereadores, diziam que nada se podia fazer em relação aquele buraco. terra desmatada é assim, não brota.

mal sabiam, que fizemos festa junina, mesmo sem bandeirinhas, que comemoramos dia das crianças, com aquele monte de presente da Um Real, que teve um circo que morou lá por meses e que todas as mulheres do bairro passaram mais tempo no rapadão só pra ver o trapezista, também não posso esquecer do campeonato de pelada que quase saiu morte e teve briga, porque tem gente que rouba e tem gente que não sabe jogar.

meu eu criança, ainda mora lá, sou a mesma menina magricela de dentes protuberantes que aprendeu que de terra seca dá pra fazer gente florescer.

Barbara Rosa nasceu em Franca, em 1991. É pós-doutoranda em Memória Social e ama escrever.

Esse texto faz parte da série "O que elas têm a dizer" em que escritoras de Franca homenageiam a cidade pelos 200 anos, comemorados no próximo dia 28 de novembro. Será um texto por dia, até o final do mês, de crônica, conto, ensaio, poesia... escrito por mulheres. Se você também quiser participar, envie seu texto para solveloso2008@hotmail.com indicando no assunto: texto para homenagear Franca. Ficaremos felizes com todas participações. Soraia Veloso, escritora e francana de coração, é a idealizadora do projeto.

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