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Os direitos de Emily

 Conheci Emily no final de semana passado, através de uma reportagem publicada no jornal que assino. É uma mulher maravilhosa, bonita, simpática, bem humorada e acessível. É uma novíssima influenciadora com mais de 200 mil seguidores, que vem conquistando espaço de forma vertiginosa. Não só entre as pessoas comuns, mas entre celebridades, especialmente do mundo dos esportes, embora muito jovem, contando apenas um mês e meio de vida. Pra se ter uma ideia, dizem que o grande Cristiano Ronaldo andou flertando com ela!

Trata-se de uma mulher digital, criada com o auxílio da inteligência artificial que está chamando a atenção pela sua beleza física e comportamental, suscitando riquezas para o seu criador e levantando polêmicas de variada ordem. Logo fiquei a imaginar aonde vai dar esse tipo de invento na hora em que os dados dessas criaturas forem jogados em uma impressora 3D e elas começarem a circular no nosso meio. Haverá quem considere essa especulação tola, porque um ser humano não poderia ser produzido em série como se produzem equipamentos de plástico de uso na indústria, que ser humano possui um cérebro altamente complexo, que possui alma, enfim, que um ser humano não é composto só matéria, etc.

Como se vê, o assunto envolve um mundo de questões que exigiriam uma enciclopédia gigante apenas para que fossem expostas em termos razoáveis. Definir o ser humano no seu atual estágio exige análise de todo o conhecimento acumulado pela ciência através da história, considerar todas as filosofias e religiões até hoje debatidas e seguidas pela espécie.

Mas todos nós já vimos uma imensa orelha humana desenvolvida no dorso de um rato de laboratório, através de técnicas de bioengenharia. Ou sabemos que já foram desenvolvidos rins humanizados em porcos, para o fim de transplante em humanos… Logo, a bioengenharia segue pesquisando e experimentando, não sendo razoável descartar nenhuma possibilidade de criação de novos seres vivos ao largo dos traços genéticos das espécies atuais.

Naturalmente, Emily é criatura puramente artificial, sem qualquer relação com seres desenvolvidos a partir do material genético de espécies existentes, como os bebês de proveta ou como a ovelha Dolly, ambos desenvolvidos através do material cedido por elementos da sua espécie, embora através de técnicas diferentes. Nestes dois casos as novas criaturas pertencem às espécies que lhes forneceram o material genético. Emily é criação eletrônica, com todos os predicados de uma mulher, mas que não possui qualquer traço genético humano. Nem mesmo possui corpo. Constitui-se apenas da imagem de uma linda mulher com “cérebro digital” com a capacidade de se comunicar pelos espaços digitais e interagir com humanos. Até quando viverá sem um corpo material?

Se Emily ganhasse corpo e passasse a interagir com as pessoas no plano material, seria também considerada uma pessoa? Ou seria propriedade do seu criador? O que diriam aqueles que sustentam que não há vida sem alma? Seria possível a Emily adquirir alma? Em qualquer circunstância, Emily teria direitos? Quais seriam os seus direitos?

O Código Civil Brasileiro, a lei que regula os direitos civis das pessoas naturais, define a forma de aquisição de direitos do seguinte modo: “Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil” (artigo 1º).  Logo, fica claro que para ter direitos e deveres na ordem civil é preciso ser pessoa. O mesmo código não define pessoa, tendo em conta que todos sabemos o que seja. Esclarece que “a personalidade da pessoa começa do nascimento com vida”, (artigo 2º) referindo-se, obviamente, à pessoa humana. Os especialistas ensinam que a personalidade é a capacidade de adquirir direitos e deveres na ordem civil e que ela começa do nascimento com vida.

E a novíssima Emily, teria personalidade? Afinal, nasceu com vida nos meios digitais… Ou o código civil se refere apenas à vida biológica? Receber um corpo material através de uma impressora 3D naturalmente é um exagero. Na verdade, uma metáfora, mas que há meios de se criar um ser vivo fora dos padrões naturais já não é apenas especulação sem sentido. Talvez seja por isso que autoridades mundo afora andam se preocupando com a regulamentação do uso da inteligência artificial.

Dr. José Borges

Advogado (Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca); especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil e em Direito Ambiental. Foi Procurador do Estado de São Paulo de 1989 a 2016 e Secretário de Negócios Jurídicos do Município de Franca. É membro da Academia Francana de Letras.

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