O rastro apagado do metanol
Há escândalos que fedem e há os que queimam. O das bebidas adulteradas com metanol é dos dois tipos. Enquanto o país soma mais de 110 casos de intoxicação — segundo o Ministério da Saúde —, o poder público finge surpresa diante de um desastre que ele próprio ajudou a fabricar.
A Polícia Federal, através da Operação Carbono Oculto – deflagrada em agosto – investiga a ligação do PCC com o metanol, usado para lavar dinheiro e adulterar tanto combustíveis quanto bebidas.
O crime organizado fez do veneno um negócio lucrativo. Mas o que permitiu que isso acontecesse em larga escala foi, antes de tudo, a decisão política de manter o setor das bebidas sem rastreamento efetivo.
Desde 2016, o Brasil vive sem o Sistema de Controle de Produção de Bebidas (SICOBE), criado para rastrear a origem e o volume de produção. No entanto, ano passado o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que a Receita Federal reativasse o sistema, alertando para o risco de adulteração. A Receita, porém, desobedeceu — e foi ao Supremo Tribunal Federal pedir para não cumprir a ordem.
Em abril deste ano, o ministro Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula, atendeu ao pedido da Receita e suspendeu a decisão do TCU. O resultado: seguimos sem controle sobre o que é fabricado e vendido no país.
Não se trata de detalhe técnico. Trata-se de uma escolha que favorece o caos, e o caos sempre tem beneficiários. Grandes empresas do setor fizeram lobby contra a reativação do sistema, alegando que ele era caro e ineficiente.
Deputados governistas repetiram que o Sicobe “nunca rastreou destilados”. É falso. Documentos da própria Receita, de 2012, mostram que o sistema rastreava, sim, esse tipo de bebida.
O argumento de que o rastreamento não controlava a qualidade é igualmente falacioso. O objetivo era outro: saber de onde vinha cada garrafa. Se estivesse ativo, hoje poderíamos identificar a origem das bebidas contaminadas. Mas o sistema foi desligado — e o país bebe no escuro.
Enquanto isso, o PCC lavava dinheiro com o mesmo metanol que agora mata consumidores.
O elo entre o submundo e Brasília pode parecer distante, mas passa pelo mesmo ponto cego: a falta de transparência. E quando o Estado luta para permanecer cego, é difícil acreditar que seja apenas descuido.
O ministro Fernando Haddad, chefe da Fazenda, poderia ter acatado a decisão do TCU e fortalecido os mecanismos de controle. Preferiu recorrer. E Lula, que tantas vezes falou em “defender o povo”, silenciou. O governo se mobilizou não para proteger o consumidor, mas para proteger a desregulação.
O resultado está nas manchetes e nas UTIs de hospitais.
Um país que gasta bilhões em arrecadação e fiscalização é incapaz de rastrear o próprio veneno. A Receita, que multa por centavos um contribuinte atrasado, é a mesma que se recusa a monitorar o setor de bebidas — justamente o que mais lucra com a informalidade.
Nada disso é coincidência. Quando um ministro, recém-saído do círculo íntimo do presidente, decide manter o sistema desativado, o discurso da neutralidade perde o sentido. É o velho Brasil institucional, em que o Estado prefere o nebuloso porque ele é conveniente.
Hoje, com a Operação Carbono Oculto revelando a presença do crime organizado no negócio do metanol, a pergunta que o governo precisa responder é simples:
Por que tanto medo de rastrear?
O TCU tentou acender a luz. A Receita apagou. O STF mandou deixar apagado.
E o Brasil, intoxicado — por metanol e por omissão —, segue brindando à própria cegueira.







