A polêmica sobre a existência ou não de um marco temporal para a demarcação das terras indígenas, que virou discussão ideológica no Brasil, surgiu em 2009, no julgamento do processo que envolvia a desocupação de parte das terras indígenas na reserva Raposa Serra do Sol, invadida ilegalmente por produtores agropecuários nos anos 1990, após a homologação do processo de demarcação. O STF acolheu a tese de que a Constituição havia fixado como marco para a demarcação de terras indígenas o ano de 1988, em que a carta entrou em vigor. Ou seja, só poderiam ser demarcadas as terras ocupadas pelos índios até o ano de 1988.
Mas o fato é que a Constituição não estabelece esse limite de tempo. A tese foi sacada de interpretação do texto constitucional e coincide cem por cento aos interesses de invasores de terras públicas. Naturalmente, passou a ter apoio incondicional da bancada ruralista, a mais bem estruturadas e organizadas do Congresso Nacional. Não obstante, em decisão da semana passada o mesmo STF reviu a tese e julgou inconstitucional a existência desse marco temporal. E o que é mais importante: com repercussão geral, o que vale dizer que todos as demarcações de terras indígenas em curso devem respeitar a decisão. Mas, em reação à decisão do Supremo Tribunal Federal a bancada ruralista está retomando um projeto que pretende instituir o marco temporal por lei federal.
Na verdade, de modo sub-reptício e com grande astúcia, a tese sustenta que os índios não podem estabelecer como suas terras que ocuparem a partir de 1988. Mas, os produtores rurais, grileiros, latifundiários, podem! Se não é uma tese inventada por encomenda, então por que os povos originários não podem obter terras para si partir de 1988 e os demais cidadãos podem? Essa dúvida os doutos que nos conduzem aos labirintos dos raciocínios jurídicos não respondem com objetividade. Afinal há ou não há igualdade de direitos entre os brasileiros?
Os maiores argumentos em defesa do marco temporal fixado em 1988, data da entrada em vigor da Constituição Federal atual é que, “ao rejeitar o marco temporal o STF reviu posição anteriormente estabelecida e cria insegurança jurídica, porque autoriza o Poder Público afastar das terras ocupadas agricultores de boa fé”. Essa tese está exposta em artigo do Jornal o Estado de São Paulo de 23.09.2023 e não se sustenta, com a devida vênia. Primeiro, decisões judiciais, na verdade, têm como fim pacificar conflitos, resolver lides, disputas sobre interesses. E o fato de o STF mudar de entendimento, por si só, não causa insegurança jurídica. Bem ao contrário, estabilizar em definitivo um posicionamento que depois se descobre injusto ou desatualizado é que poderia gerar insegurança jurídica.
Por outro lado, os ocupam terras públicas ou terras já ocupadas por povos tradicionais (sejam indígenas, quilombolas, ribeirinhos, etc.), não podem ser tidos como ocupantes de boa fé. O que temos assistido é a ocupação violenta de territórios indígenas, inclusive demarcados, e de quilombos, não raro com mortes e, porque não dizer, até com ações de extermínio, como no caso recente dos índios Yanomamis, ou do assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete, há pouco mais de um mês na Bahia.
É óbvio que o marco temporal busca inviabilizar a demarcação das terras indígenas não definidas ou ainda não homologadas. É lamentável que o Congresso Nacional, por uma parte dos seus membros, haja como defensores de interesses particulares e não da comunidade brasileira. Se pensasse corretamente entenderia que a demarcação de terras é, para os povos originários, sinônimo de relativa paz e garantia de sobrevivência. E que deputados e senadores representam também esses brasileiros.