Fiscalização frouxa
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A fiscalização de obras e posturas municipais sempre foi uma das atribuições da Prefeitura, desde o primeiro Código de Posturas editado em 1831, ainda nos tempos da Vila Franca do Imperador. Esse tipo de legislação dá ao Estado o poder de controlar o espaço público e aspectos públicos no espaço privado, por exemplo as regras específicas para determinados usos como de espaços para saúde ou de aglomerações como cinemas e teatros, em todo o território do município. Já o Código de Obras contém as normas edilícias, aquelas que se referem à construção de obras particulares e públicas, tais como recuos para abertura de vãos de iluminação e ventilação dos cômodos, os tipos de revestimentos para garantir higiene e conforto, recuos para a via pública e para os vizinhos, taxas de ocupação do terreno, taxas de permeabilidade do lote, a altura das edificações, entre outros aspectos. Ao longo do tempo, com o processo de urbanização e crescimento da cidade e o aumento dos conflitos de vizinhança, ao controle das construções se somou uma preocupação maior com o uso e a ocupação do solo urbano, expressa em leis de zoneamento e em um planejamento de longo prazo, como o Plano Diretor e planos setoriais de habitação, mobilidade e saneamento.
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Para o controle do espaço urbano sempre foi necessário um corpo de fiscais que, devidamente treinados e conhecedores da legislação, pudessem agir na defesa dos interesses coletivos, na medida em que as regras edilícias e urbanísticas devem atender ao que está previsto em lei, evitando prejuízos criados por interesses individuais, já que a propriedade privada, de acordo com a Constituição Federal, deve cumprir sua função social e está submetida às regras gerais que garantem uma convivência mais pacífica entre as milhares de pessoas e empresas que convivem lado a lado no território urbano.
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No final dos anos 1960 e início dos 70, duas leis codificadas foram aprovadas no âmbito da modernização administrativa em curso quando da implantação do primeiro Plano Diretor local, um Código de Edificações e um Código de Posturas. Quando da aprovação do novo Plano Diretor em 2003, havia a expressa condição de atualizar esses códigos às necessidades dos tempos atuais, de uma cidade bastante diferente daquela dos anos 1960. Isso somente foi ocorrer parcialmente no final de 2021 (lei complementar nº371/2021) em plena pandemia, com a aprovação pela Câmara de um novo Código de Obras realizado a distância e a toque de caixa, com escassa participação dos profissionais e da sociedade. É um código que traz alguma modernização, como a aprovação simplificada de habitações de pequeno porte e ao mesmo tempo atraso, ao reduzir o papel da Prefeitura no processo de licenciamento a “carimbador de papéis” e mera arrecadação fiscal, sem qualquer preocupação mais acentuada com o planejamento da cidade do futuro e das demandas provocadas pela crise climática em relação ao ambiente construído, como à eficiência energética das edificações, o incentivo ao uso de iluminação e ventilação naturais nas construções, a redução de resíduos ou com as condições de higiene das habitações.
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Alguns fatos recentes demonstram a falência do modelo de fiscalização adotado pela Prefeitura ao longo dos últimos anos, após o desmonte da Secretaria de Planejamento que existia desde o Plano Diretor de 1972. Houve um abandono da fiscalização de choque e os fiscais, por conta de um sistema de valorização apenas do trabalho que gera receita preferem o conforto do escritório da burocracia ao das ruas. Basta caminhar por qualquer bairro da cidade para verificar o resultado dessa política: materiais de construção, lixo e entulho ocupam ruas e calçadas, publicidade irregular ocupa espaços públicos, lotes sujos ante epidemia de dengue, calçadas intransitáveis, construções abandonadas e assim por diante, a lista de irregularidades no espaço é longa. A isso se soma uma interpretação canhestra e equivocada das normas de acessibilidade pela Prefeitura, que tem levado à contínua criação de novos obstáculos ao caminhar pela cidade, para deficientes físicos ou não, um desastre.
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Mas voltemos aos fatos recentes. Um, o desabamento da cobertura do Clube dos Bagres. Bem tombado como patrimônio histórico, a cidade que se diz orgulhosa do seu basquete deixou cair o lugar onde ele floresceu sem que a fiscalização da Prefeitura tenha agido para exigir a adequada manutenção do edifício, deixando o local funcionar sem licença e que poderia ter gerado uma gigantesca tragédia, felizmente não ocorrida. A “deforma” da Praça Nossa Senhora da Conceição pela própria Prefeitura é outro, o entulho da obra foi lançado sobre os jardins durante semanas, num flagrante desrespeito à legislação diante da completa omissão da fiscalização.
Outro fato recente dessa falência da fiscalização é o cândido anúncio feito pelo próprio prefeito nas redes sociais de que enviou à Câmara uma lei de anistia a edificações irregulares, como se fosse algo positivo. Em 2021, já havia sido aprovada pela Câmara uma lei da mesma natureza, oferecendo isenção do pagamento para a regularização de imóveis com até 140 m². Agora, a área aumentou e passou para 200 m². Segundo o prefeito, “A ideia aqui é que a gente possa regularizar o imóvel que têm até 200 metros quadrados no total, construído ou ampliado antes de 30 de outubro de 2023. Com o aumento da metragem, muito mais famílias serão beneficiadas”, afirmou Alexandre. Ainda de acordo com a prefeitura, de 2021 a 2024, quase 3 mil imóveis foram regularizados e existem 608 processos de regularização em andamento.
Se quase quatro mil imóveis foram regularizados, com o aumento da área construída muitos outros o farão. Significa que a fiscalização falhou totalmente, ninguém viu quatro mil construções sem licença na cidade? Mesmo com os fiscais sendo beneficiados por adicionais de produtividade que os tornam os servidores mais bem pagos pela Prefeitura. Afinal, quem seguiu a lei, aprovou o projeto regularmente e pagou seus impostos, pode ser considerado trouxa, já que a fiscalização é frouxa? Pela lógica do prefeito, essas famílias que cumpriram a lei não foram beneficiadas.
Desde 2003, não há uma atualização da Planta Genérica de Valores dos imóveis cadastrados pela Prefeitura, numa cidade com intensa dinâmica imobiliária, o que gera rápidas modificações nos valores de mercado. Após Gilmar Dominici, nenhum prefeito teve coragem para enfrentar essa questão, nenhum modernizou o cadastro físico transformando-o em cadastro multifinalitário com uso de geoprocessamento, importante instrumento para o planejamento físico e territorial do município. Esse atraso e a falência do sistema de fiscalização da Prefeitura é preocupante no momento em que o prefeito prepara-se para cumprir compromissos políticos com o setor imobiliário liberando a área da bacia do Rio Canoas à ocupação de loteamentos, na contramão da crise climática e da proteção ao principal manancial que abastece a cidade.
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Se hoje é a construção civil um dos motores da economia da cidade e o setor imobiliário privado é quem de fato decide sobre a ocupação do território desde que foram extintas a Secretaria de Planejamento, PROHAB e DINFRA, e os planos municipais sobre o espaço urbano foram abandonados em escaninhos sem ninguém para lê-los e interpretá-los, sem fiscalização de fato talvez não possamos continuar muito tempo como alardeia a propaganda oficial, “a segunda melhor cidade do Brasil para se viver”.
Mauro Ferreira é arquiteto e urbanista, professor voluntário de planejamento urbano no Programa de Mestrado em Políticas Públicas da UNESP-Franca
Este é um exemplo de como uma redação excelente torna agradável a leitura sobre um assunto árido.
Muito bom Mauro!
Muito bom Mauro, excelente matéria e visão.
Concordo, FROUXA, LARGADA E ABANDONADA.