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Ele fala grego!

Conheça a história de um jovem professor e escritor que domina sete idiomas, entre eles, o grego antigo e, como docente é referência na área de Letras para toda uma geração de jovens em Franca e região

A expressão ‘falar grego’ popularizou-se para definir um ruído de comunicação: algo dito e não compreendido pelo outro. O idioma grego como significante de algo difícil, incompreensível, num alfabeto totalmente diverso aparecendo então como meio que não perfaz a mensagem.
A questão aqui é que o nosso entrevistado de hoje fala, sim, literalmente, grego. Mais especificamente, grego antigo e, no entanto, por suas tantas outras qualidades, é lindamente entendido e admirado por uma legião de jovens estudantes. Quantas pessoas você conhece ou conhecerá que falam grego antigo e também inglês, espanhol, italiano, latim, mandarim e LIBRAS (língua brasileira de sinais).

Esse é Caio Vieira Reis de Camargo, de 34 anos, nascido em São Paulo, mas que vive em Franca desde criança; graduado em Letras pela UNESP – Araraquara. Mestrado em Linguística e Língua Portuguesa pela mesma instituição;
doutorado em grego antigo e linguística computacional (UNESP – Araraquara e pela City University of Hong Kong); pós-doutorado em grego antigo e LIBRAS (pela UNESP – Araraquara) e atualmente na sua segunda graduação EaD em Letras-LIBRAS, pela Faculdade Dourado Stiller.
Sobre a gramática do grego antigo, Caio explica: “Se, então, em uma frase grega a palavra professor aparecer como didáskalos (διδάσκαλος), ele é o sujeito; já didáskalon (διδάσκαλον), é objeto direto, enquanto didáskalou (διδάσκαλου) seria o complemento nominal.”

Professor em várias instituições de Franca e de fora (leia abaixo), Caio Camargo se prepara atualmente para cursar Medicina, com vistas à psiquiatra em interface com a Linguística, um projeto já para segundo doutorado.
Escritor talentoso, autor de cinco romances publicados, Caio é alguém que podemos situar, tanto intelectualmente quanto em termos de carisma para com alunos e leitores, como acima da média, sem exagero, uma mente além do seu tempo. Autor de análises bastante precisas e críticas nas suas aulas e nas redes sociais, diz ele acerca do momento histórico que vivemos: “entre discursos vazios, projetos conspiratórios e a projeção de salvadores da pátria, como uma releitura do Sebastianismo da história de Portugal, mergulhamos em uma vida em que elegemos os vilões errados e acreditamos que todos os problemas que vivenciamos pertencem ao agora, ou a um partido político, ou a um determinado grupo social.”

Folha de Franca – Você é muito conhecido pelo domínio de vários idiomas. Fale sobre como se deu conta de sua paixão e aptidão e de como o conhecimento de outras línguas pode nos moldar cognitivamente (essa é uma teoria que tenho: cada língua tem uma estrutura que reproduz determinadas culturas).
Caio Camargo – Meu gosto pelos idiomas foi um despertar que surgiu desde minha primeira aula de inglês. Meus pais sempre se preocuparam em investir o máximo possível na educação dos filhos e, por isso, antes dos dez anos eu já frequentava escolas de idioma. O inglês, primeira língua com que tive contato, me encantava, porque sempre gostei muito de jogos de vídeo game, principalmente de RPG, gênero que conta com inúmeras narrativas, tramas, reviravoltas e desafios.
Eu passava horas e horas repetindo falas desses jogos, pesquisando no dicionário palavras, estudando os mistérios e, assim, descobri um talento para aprender línguas. Junto com isso, filmes legendados eram uma realidade semanal em casa, então, o contato com um idioma estrangeiro era constante, além, claro, de ser filho de uma mãe que falava três idiomas. Posteriormente, então, pude estudar espanhol, francês e italiano, além de grego antigo e latim na faculdade, mandarim e cantonês em Hong Kong, durante meu doutorado, e, atualmente, LIBRAS.
Muito além de um conhecimento gramatical, como dominar a morfologia e a sintaxe de um idioma, o estudo de uma língua é uma competência desenvolvida que nos permite colocar as lentes de uma cultura e todo o seu processo de formação, bem como de atualização. Seja pelo vocabulário, pelas expressões idiomáticas ou pela produção literária, estudar línguas nos permite visitar diferentes contextos e nos conectar com a diversidade, com o diferente. Sem sombra de dúvidas, isso nos torna mais sensíveis e compreensíveis em relação ao mundo e às pessoas e ilumina nossa jornada para caminhos de engrandecimento, tolerância e beleza.

Folha de Franca – Discorra sobre o conhecimento do grego antigo. Como essa língua se estrutura?
Caio Camargo – O grego antigo foi a língua em que me habilitei na faculdade e é minha grande paixão linguística. Foram quatro anos durante a graduação, que se tornaram outros sete no mestrado, no doutorado e no pós-doutorado. Graças a esse idioma, pude conhecer professores maravilhosos, que se tornaram inspirações pessoais e profissionais para mim. É uma língua antiga, ou seja, com uma produção escrita que ultrapassa dois mil anos e, por isso, possui uma dinâmica diferente em relação às línguas modernas (como português, inglês, francês etc) e uma produção literária vasta e bastante diversificada.

Folha de Franca – Como foi aprendê-la foneticamente, se é uma língua há muito não utilizada?
Caio Camargo – Na área da linguística, não utilizamos a expressão “língua morta” para o grego antigo ou para o latim, visto que são línguas até hoje utilizadas para diferentes estudos (linguísticos, de tradução ou literários). Por isso, usamos o termo língua literária, ou seja, não usada para a comunicação. Então, como se lê ou se reproduz um texto em grego antigo? Basicamente, a partir de estudos filológicos, utilizamos a chamada pronúncia restaurada, isto é, uma reconstituição dos sons, que nos permite ler textos e pesquisá-los.
Diferentemente de nossa língua portuguesa, que se organiza sintaticamente pela posição de termos (permitindo algumas inversões), o grego antigo é uma língua de casos, o que significa que as palavras terão sua função sintática baseada em sua morfologia, daí usamos as terminologias nominativo, acusativo, dativo, genitivo e vocativo. Cada um desses casos possui um papel sintático na oração, vinculado a sua desinência morfológica, e, por essa razão, os vocábulos em uma frase em grego estarão mais livres, digamos assim, porque não dependerão de uma posição para gerar sentido.
Para ficar mais claro, “Maria foi ao shopping” seria a frase mais comum que utilizaríamos em português; “Ao shopping foi Maria” ou “Foi Maria ao shopping” são empregos possíveis, porém menos recorrentes na fala, e mais comuns em textos poéticos. No grego, não analisamos a posição dos termos, mas suas desinências e a partir delas entendemos quem é o sujeito da frase, o objeto direto etc. Se, então, em uma frase grega a palavra professor aparecer como didáskalos (διδάσκαλος), ele é o sujeito; já didáskalon (διδάσκαλον), é objeto direto, enquanto didáskalou (διδάσκαλου) seria o complemento nominal. E assim por diante com outras palavras. Claro, antes disso, há o processo de alfabetização, porque há um novo alfabeto e esse desafio é o que traz a beleza em desbravar esse estudo.

Folha de Franca – Você trabalha com algo relacionado ao grego antigo?
Caio Camargo – Atualmente, pesquiso na área de grego antigo e LIBRAS pela UNESP de Araraquara, onde também ministro aulas de grego antigo para a graduação em Letras.

Folha de Franca – Comente sobre a sua atuação na atualidade. Onde trabalha? Quais as suas realizações profissionais mais marcantes?
Caio Camargo – Atualmente divido meu tempo entre a sala de aula, como professor de ensino médio e superior e como escritor. À medida que meu trabalho com a escrita foi aumentando, tive que diminuir a presença em sala de aula. Dou aula nos Colégios Jesus Maria José, Samaritano e Exato, na cidade de Franca, na Faculdade Pestalozzi, também em Franca, no Colégio Objetivo de Ituverava e na UNESP de Araraquara. Do ponto de vista da docência, dar aula é algo que nos marca todo ano, com novas turmas, novos desafios pedagógicos e humanitários.
Como escritor, tenho 6 livros de ficção publicados e um documentário escrito, “Um mundo em LIBRAS”, em que falo sobre a surdez e a comunidade surda da cidade de Franca. Esse trabalho é um divisor de águas, porque me abriu mais portas para a escrita e me permitiu realizar um dos mais importantes trabalhos de minha vida, que é a fundação de uma escola bilíngue para surdos e a autoria de um material didático, algo que também deve acontecer em um futuro próximo.

Folha de Franca – Quais são as suas influências artísticas?
Caio Camargo – Tive o prazer de crescer com acesso a diferentes artes, como pintura, música e literatura. Na música, por exemplo, o compositor grego Yanni e o cantor Andrea Bocelli são grandes referências, embora eu seja um verdadeiro caçador de novos artistas e gêneros musicais. Na literatura, sem sombra de dúvidas, Oscar Wilde foi um marco em minha formação e na influência em minha carreira e, dos escritores contemporâneos, Umberto Eco, José Saramago, Milton Hatoum e Mia Couto ocupam um lugar especial em meu coração.

Folha de Franca – Comente sobre a literatura na sua vida: como leitor e como escritor.
Caio Camargo – A leitura sempre fez parte da minha formação e eu nunca tive restrições no acesso à cultura. Minha avó materna era professora de português e meu avô, um exímio leitor. Desde minha alfabetização, livros infantis e gibis se avolumavam em minha casa e eu os lia repetidamente. A leitura, portanto, sempre fez parte da minha rotina, é algo que ocupa meus dias de maneira insubstituível, como uma atividade física, por exemplo.
​As literaturas infantil e infanto-juvenil me fizeram escrever uma pequena ficção ainda na adolescência, uma história de guerreiros que eu guardei como recordação de um embrião de minha carreira como escritor. Posteriormente, como cursei faculdade de Letras, visitei os mais célebres autores de diferentes países e culturas e desfrutei de um mosaico literário que me guia até hoje e me serve como ampara os desafios do cotidiano. Ler Dositoévski, Machado de Assis, Cervantes, Tchékov, Murakami, Homero, Sófocles, Jostein Gaarder, Dickens, Edgar Allan Poe ou Gabriel Garcia Marquez, e muitos outros, não tinham relação com ganhar mais ou menos na profissão ou disputar um concurso de perguntas e respostas: na realidade, eles foram fundamentais para eu me entender como pessoa, e também o próximo, e, assim, construir um caminho de harmonia à medida que os anos de minha vida se passavam.
​Foi nesse período que decidi que gostaria de começar a contar histórias, assim como aquelas dos jogos de meu vídeo game ou dos meus livros de infância que faziam meus olhos brilharem de emoção. Retomei a escrita de ficção, que estava adormecida desde a adolescência, e nunca mais a interrompi. Embora hoje seja difícil equilibrar nosso tempo, ainda mais com o mercado audiovisual tão forte, ler e escrever ocupam um espaço cativo e insubstituível em minha rotina.

Folha de Franca- Como os seus livros publicados se comunicam? Como tem sido a recepção dessas obras?
Caio Camargo- Meu primeiro livro publicado pela editora Giostri se chama “Quando o sol não se põe”, lançado em 2014, que narra a história de dois adolescentes que dão início a um romance. A temática LGBTQI+ na literatura ainda engatinhava na época, ou sempre se voltava à exploração do aspecto carnal, então a recepção foi bastante positiva, porque a obra se dedica ao sentimento, à descoberta e aos desafios da homoafetividade na adolescência. O livro deve virar um musical em breve, adaptado pelo diretor de teatro Alexandre Biondi.
​Três anos mais tarde, dei início a uma série literária, mantendo a proposta de trabalhar com temas sociais. Surge, então, “Haskel”, a obra que inaugura uma trama envolvendo outros 3 personagens, “Hershel”, “Pamela” e “Raphael”, que dão o nome a suas respectivas obras. Essas histórias, narradas de maneira independente, estão ligadas por um crime de eutanásia e, individualmente, exploram outras temáticas, como homofobia, racismo, machismo, intolerância religiosa, desigualdade sexual e abusos. Os quatro primeiros volumes, que podem ser lidos em qualquer ordem, já estão disponíveis e, até o final do ano de 2021, devo finalizar o quinto e último livro, “O julgamento”, que reúne todos esses personagens para um desfecho. Concomitante, estou trabalhando em uma graphic novel, em um roteiro de um curto metragem e na adaptação de “Haskel” para uma série televisiva, mas essas novidades serão divulgadas posteriormente.

Folha de Franca – O que você diria sobre a sua arte e profissão amalgamadas à sua subjetividade?
Caio Camargo – Tanto como professor quanto como escritor, tenho em mente que meu público deve experimentar o mesmo nível que eu alcanço quando preparo uma aula ou escrevo uma narrativa. Cada elemento que compõe meu discurso, meu texto, cada processo criativo ou pedagógico, cada sensação de conquista ou de frustração; enfim, toda essa mescla de emoções de que desfruto nos bastidores deve produzir um efeito semelhante em meu público. Por esse motivo, cada aula que ministro ou narrativa que escrevo é uma nova paixão, uma busca por aprimoramento e por refinamento da técnica.
​Há muitos anos pratico artes marciais e ali aprendi que mesmo o mais habilidoso combatente sempre tem algo a aprender no manuseio de uma arma ou no desenhar de uma série de movimentos. Assim é uma aula ou uma escrita, cada palavra pensada e dita inaugura um leque de possibilidades de aprendizagens e aperfeiçoamento e, como uma pessoa que não gosta de fazer a mesma coisa a vida toda, encontrei nessas áreas a paixão de estar em constante processo de transformação. Relembrando Sócrates, “Só sei que nada sei”, em suas ironias e provocações estava a certeza de que nosso saber é sempre transitório e perene e a felicidade está em sua constante busca. Minhas profissões são a maneira que encontrei de querer, quando velhinho, olhar para trás e me orgulhar de uma trajetória pautada na busca e transmissão do conhecimento.

Folha de Franca – O que você diz sobre a docência na sua vida?
Caio Camargo – Ministrar aulas faz parte da minha vida desde os 17 anos, quando iniciei em projetos sociais e, desde então, visitei diferentes contextos educacionais em diferentes cidades, como Franca, Araraquara, Maringá, Ituverava, Guaíra e Uberaba. Ensinar me tornou uma pessoa melhor, porque envolve o desafio de levar nosso conhecimento e transmiti-lo a alguém mais novo ou em processo de formação. Mais além, é um verdadeiro desafio conciliar a pedagogia com nossa experiência prática, domar nossas emoções, equilibrar nossa razão, principalmente para quem leciona na área de humanas e o tempo todo se vê desafiado por provações filosóficas.
​A docência é parte da minha existência e sempre será, mesmo que um dia eu mude de área, em qualquer uma em que eu atuar haverá um espaço para lecionar. Sinto-me, de alguma maneira, responsável por um processo de transformação que, se não melhorará o mundo em sua grandiosidade, mudará a vida de uma pessoa, e isso já aquece e acalenta meu coração. Como outrora dissera Madre Teresa de Calcutá, “posso ser uma gota no meio do oceano, mas, sem mim, ele será menor”. É esse meu horizonte como professor.

Folha de Franca – Como você avalia o Brasil e o mundo dos últimos anos nos âmbitos político, social, cultural?
Caio Camargo – Creio que todo momento de crise, social ou econômica, fomente radicalismos e crenças de que somente medidas de tolerância zero possam recuperar uma sociedade ou um país. Esse é um efeito histórico repetido, mas que ainda gera resultados graves, nem sempre previsíveis. Entre discursos vazios, projetos conspiratórios e a projeção de salvadores da pátria, como uma releitura do Sebastianismo da história de Portugal, mergulhamos em uma vida em que elegemos os vilões errados e acreditamos que todos os problemas que vivenciamos pertencem ao agora, ou a um partido político, ou a um determinado grupo social. O mundo passa por momentos difíceis, porém já atravessamos períodos em que a escravidão era legalizada, ou de grandes guerras e de perseguição de minorias. Talvez as mudanças não aconteçam na velocidade como gostaríamos; entretanto, devem nos lembrar da importância de alimentar a esperança, bem como a luta, de que devemos sempre mirar dias melhores e mais justos. Nosso país é de uma riqueza cultural maravilhosa, mas de um acesso bastante desigual e muito limitado para a maioria das pessoas. Somado a isso, entendo que passamos por um profundo momento de pragmatismo, em que tudo que aprendemos ou estudamos deve ter uma finalidade prática e rentável, e de materialização da vida, na qual o “ter” assumiu um patamar muito superior ao do “ser”. Nesses dois cenários, o artístico perdeu espaço, porque ficou erroneamente visto ou limitado a um entretenimento ou algo de pouca importância. Isso me lembra uma frase do psicanalista alemão Erich Fromm, “Se sou o que tenho e perco o que tenho, então quem sou?”; então, menos artes significa mais pessoas procurando remédios para suas ansiedades e seus dilemas existenciais, infelizes e frustradas, consequências de uma vida em que somente a busca material foi ensinada.

Vanessa Maranha

É Psicóloga, Jornalista, Escritora Premiada, colunista da FF.

2 Comentários

    1. Obrigada pela leitura e pelas palavras, querida Mara!
      Lisonjeada aqui, pelo seu comentário. Vc é alguém que faz toda a diferença aqui!😉✨🌷

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