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Ciscando Aventuras

FILME – JULIETA

(2015, diretor: Pedro Almodóvar, 96 minutos).

Baseado nos contos de Alice Munro – Destino, Silêncio, Pronto, do livro Runaway (2004). Música de Alberto Iglesias, si no te vas.7

Uma mãe escreve uma carta sem destino a sua única filha. Uma carta nua e direta, um vômito seco de lembranças e sensações, de culpas, de fracassos e abandonos e talvez também de mentiras compassivas.  O cineasta por meses – na verdade anos – ficou às voltas com uma personagem que agora se desdobra em duas atrizes – Adriana Ugarte e Emma Suárez – para representar a juventude (a lembrança) e a maturidade (o presente) de uma mesma voz. Almodóvar não revelou muito, nem dela nem da história que leva seu nome, e talvez temeroso de não encontrar as palavras exatas para falar de um filme de mulheres que se parece muito pouco com seus outros filmes de mulheres. Um drama sem pausa, para as personagens e para o espectador, que cavalga pelo tempo, a geografia e os acontecimentos com uma única esperança: encontrar um destino para essa carta angustiada.

“Este é um filme de mulheres imperfeitas, mas defensáveis, como são vocês, como somos todos”, afirma Almodóvar.. A maior parte do elenco nunca tinha trabalhado com o diretor e o enredo é inspirado em três contos da Nobel de Literatura Alice Munro. “Tentei ser o menos retórico possível. A contenção me acompanhava porque decidi que esse era o modo de contar esta história, que não é um melodrama, mas um drama seco”.. “Lutei muito com as lágrimas das atrizes, contra a necessidade física de chorar. Essa luta é muito expressiva. Não é por pudor, é porque eu não queria lágrimas, o que queria era abatimento. Aquilo que fica dentro, depois de anos e anos de dor. Adoro o melodrama, é um gênero nobre, um gênero grandioso, mas eu sabia muito bem que não queria sua épica, queria outra. Simplesmente este tinha de ser um filme muito seco”.

Comprou os direitos autorais de Munro, em 2009.  Em seu elogio à escritora canadense, a Academia Sueca disse ao lhe conceder o Nobel que em suas histórias a maior dor não se expressa, “interessa-lhe o silencioso e o silenciado, as pessoas que escolhem não escolher, os que vivem à margem, os que abandonam e os que perdem”. (texto do El País, versão brasileira, julho de 2016).

POR QUE GOSTEI: um filme que é verossímil, talvez para quem já viveu um drama sem ser melodramático, sem ser vitimizado ou vitimizante. Um drama de quem vive em silêncio algo maior do que se pode compreender. Pessoas muito sensíveis alcançam. Almodóvar surpreende neste filme, ele que pinta com cores primárias e emoções intensas seus primeiros filmes. Munro é autora de poucas e sóbrias cores na pintura dos sentimentos, e ele a acompanha no filme, embora diga que restou pouco dos contos dela no filme. Admiração pelo diretor-autor deste nosso mundo contemporâneo. Um trecho da carta da mãe, Julieta, à filha: “Eu te eduquei na mesma liberdade que meus pais me educaram (…). Nunca quis te falar disso, você era muito pequena para que te perturbasse com a amargura de minha culpa. Mesmo assim, você a percebeu (…) e, apesar de meu silêncio, acabei te transmitindo isso como um vírus”. Remetente: Julieta. (

LIVRO – CLUBE DO FILME

(David Gilmour, RJ: Intrínseca, 2009, 232 páginas).

Escritor e jornalista televisivo canadense. Trabalhou para o Festival Internacional de Cinema de Toronto antes de iniciar sua carreira na televisão, como crítico de cinema na Canadian Broadcasting Corporation. Protagonizou o talk show da CBC Newsworld, Gilmour on the Arts, ganhador do Gemini Awards. (Wikipédia).

O livro, lançado em 2007, trata da educação dada pelo próprio autor a seu filho adolescente, trocando a escola regular pelo compromisso de assistir três filmes por semana. A começar da epígrafe, que muito concordo: “ eu não sei nada de educação, exceto isto: que a maior e mais importante dificuldade dos seres humanos parece residir naquela área que diz respeito a como criar os filhos, e como educá-los” (Michel de Montaigne, 1533-1592).  

POR QUE GOSTEI: Fiz a revisão dos filmes que o autor escolheu para ver com seu filho. O escritor  escolheu filmes que ele, pai, considerava bons e outros nem tanto,  outros definitivamente péssimos.  O que demonstra que o pai não queria doutrinar o filho na estética dele, pai.  Era importante o convívio pai-filho, e a troca de ideias.  Algo que preenchesse o espaço da escola, que o filho não queria mais cursar.  Afinal, a Escola é o lugar sagrado para inserir crianças e adolescentes no mundão que vivemos.  O livro já tem 14 anos, e se o filho tinha 17 anos, hoje deve estar com 31 anos.  Realmente não sei o que rendeu este experimento, mas com certeza sei que foi fundamental para o crescimento emocional dos dois, pai e filho.  Contabilizei 114 filmes que viram, em 40 semanas, ou aproximadamente 3 anos.  O pai, crítico de cinema, não queria longas e críticas conversações sobre filmes difíceis, etc., ele queria apenas este convívio em que os dois poderiam conversar a respeito dos filmes.

Nesta pandemia, que tornou a Escola um espaço esquecido e precário para muitos adolescentes,  como será que cada família lidou com seus filhos?  O que fizeram com a lacuna que a Escola deixou?  A questão não passa apenas pela aquisição de conteúdos, que a cognição pode alcançar, se houver disposição de quem aprende e de quem ensina.  Mas e o convívio das crianças e adolescentes com seus pares? A reflexão sobre a vida?  As experiências emocionais dos adolescentes com este fenômeno tão cruel –  a pandemia –  que deixou tantas sequelas. Entre elas uma fundamental – um estado de depressão e falta de sentido da vida, bastante evidente, para quem acompanha esta jovem geração.   

Em uma entrevista, no Brasil, em que pai e filho estiveram conversando sobre o livro e sua experiência, o pai diz que é perfeitamente possível que um adolescente saudável odeie a Escola, e que sua autoestima possa ser tão massacrada que torne este adolescente uma pessoa infeliz se for obrigado a ir para a Escola.  Na entrevista, o filho Jesse diz que sugeriu ao pai escrever sobre esta experiência dos dois, e o filho, afinal, se tornou um cineasta.

Maria Luiza Salomão

Maria Luiza Salomão é psicanalista pela Sociedade de Psicanálise de São Paulo e mediadora de leituras, participante do projeto Rodalivro, membro da Academia Francana de Letras. Correspondente da Afesmil (Academia Feminina Sul-mineira de Letras).

2 Comentários

  1. Li o livro de Alice Munro no qual Almodóvar se inspirou. Na coleção Folha o título é ‘Fugitiva’. Escritora muito habilidosa e que vale a leitura.
    Apesar de um pouco saturado de Almodóvar, assisti a muitos filmes dele de uns tempos para cá, vou dar uma olhada nesse.

    1. Sim! Obrigada pela dica de Munro: achei em inglês apenas: Runaway. Este do Almodóvar, é um filme interessante. Depois comente o que achou!

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