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ARISTIDES

Por Maria Conceição Castro da Silva

Apesar de seu atraso mental e de ter manuseado brinquedos infantis até aos dezoito ou dezenove anos, ele tinha uma memória privilegiada.

Ele recordava tudo que vivera desde a mais tenra idade; era até impossível acreditar, devido a sua deficiência! E ele só queria falar!

Ah, como gostava de conversar! Ele só queria falar; contar as histórias de sua infância, falar sobre o trem de ferro, sobre as fazendas em que morara e dos moradores de cada uma delas… nem se importava se era gago, tinha uma tremenda dificuldade em pronunciar as palavras, fazendo com que as pessoas perdessem a paciência de ouvi-lo e o deixassem falando sozinho sem nenhuma compaixão! Ah! Era muito triste para as pessoas de bem que presenciavam tal fato! Mais triste ainda era para ele sentir-se desprezado, porém, ele não se desanimava nunca! Talvez porque às vezes não percebesse por sua pureza de coração, ou por ser persistente mesmo.

Sonhava aprender ler e escrever, ah! Como sonhava! Sua mãe o matriculou na escola por várias vezes, mas, coitado, por mais que se esforçasse nunca conseguiu passar das primeiras letras de seu primeiro nome; às vezes desistia por algum tempo, porém, se encontrasse uma nova oportunidade, começava tudo de novo!

Também, aos fins de semana, gostava de ir aos bailes para dançar.

Gostava de passear, andar pela cidade,explorar e conhecer tudo que havia nela, mas muitas vezes, chegava em casa machucado por ter se envolvido em brigas porque ficava furioso com as zombarias e com os apelidos pejorativos que recebia dos moleques ou até mesmo, de homens sem coração que não tinham o mínimo de caridade por uma pessoa como ele, desprovido de sorte.

Foi um processo demorado e trabalhoso para a família convencê-lo de que não deveria se importar com aquilo porque se ele não desse atenção logo eles passariam a respeitá-lo.

Ele não perdia oportunidades de conhecer novos lugares da cidade; também não tinha vergonha de perguntar às pessoas tudo aquilo que desejava conhecer; se a primeira pessoa que perguntasse o ignorasse, ele tentava até encontrar alguém que lhe desse atenção e lhe desse uma resposta satisfatória.

Era apaixonado por músicas sertanejas raiz, principalmente Folia de Reis. Gostava tanto que lutou incessantemente para quebrar a intransigência de sua mãe, e ela consentisse que ele comprasse uma sanfona de oito baixos a fim de acompanhar uma Companhia que tinha próximo a sua casa, representando o bobo da corte usando uma bela fantasia de cetim colorido; sua felicidade era tão grande, que ele não cansava de se admirar em frente ao espelho. Em seguida comprou um cavaquinho, que também era  usado no acompanhamento das músicas. e bem mais tarde, quando cansou da Folia de Reis, comprou um teclado Porém, só se divertia um pouco quando estava disposto, tentando tirar de ouvido alguma música, mas sem muito sucesso; mesmo que a família tentasse colocá-lo em uma escola de Música, não adiantaria, pois ele era muito ansioso, não conseguia permanecer nos lugares por mais de alguns poucos minutos.

Seu desejo era trabalhar, ser independente, e ganhar dinheiro para comprar tudo que tivesse vontade; ele só queria trabalhar!!!

Não tinha noção nenhuma de regras de trabalho; nunca encontrara alguém que tivesse paciência e vontade de ensinar-lhe uma profissão, mas ele queria trabalhar!

De manhã, bem cedinho, quando acordava animado, pegava suas ferramentas, colocava na carriola e saía em busca de algum quintal ou jardim para capinar, podar, plantar…

Quando, porventura encontrava uma alma bondosa disposta a ouvi-lo, era contratado, para logo depois, esquecer sua bondade e dispensá-lo sem pagar nenhum centavo, pelo menos por ter chegado até ali carregando ferramentas pesadas; alegavam que era por ele não saber fazer o serviço com capricho e não conseguir desempenhar bem a tarefa pela qual fora contratado; mas ele não desanimava não se dava por derrotado, e continuava indo atrás de serviços; ele só queria trabalhar, trabalhar, trabalhar,

O primeiro serviço que conseguiu desempenhar bem foi em um viveiro de café, onde ele enchia saquinhos de terra para serem colocadas as sementes; lá ele permaneceu por um bom tempo. Depois, tentou vários outros biquinhos, e sentia-se feliz ao voltar para casa levando algum dinheirinho. …

Tentou até como servente de pedreiro, mas, coitado, sua força física não era suficiente para carregar as latas de concreto, coitado!!!

Começou, então, a recolher recicláveis; com sua carriola, atravessava a cidade a procura de material, para depois andar mais outro tanto a fim de encontrar um depósito de sucatas, que lhe comprasse em troca de míseros valezinhos, os quais acabavam sumindo e ficava tudo por isso mesmo. Mas, ele não se desanimava!

Outro de seus hobbies era comprar ferramentas; para tudo que ele pensava em fazer, ele comprava ferramentas para aquela função!

Aristides, aos poucos foi revelando sua aptidão em trabalhar madeiras; qualquer pedacinho de pau, que encontrava nas ruas, levava para casa; comprou então ferramentas necessárias para madeira e a primeira peça que confeccionou, foi um trem de ferro, tal era a paixão, as boas recordações e as saudades que sentia da Maria Fumaça. Fez inclusive a locomotiva com sua chaminé e tudo mais que nela havia; fez as rodinhas usando serra copo, fez as janelinhas, os vagões… e tudo mais quanto faz parte de um trem de ferro, só não ficou perfeito e não durou porque a madeira que usou era ruim e se desmanchou logo. Depois começou confeccionar boizinhos, carrinhos de bois, e casinhas de presépio, os quais já não ficavam tão caprichados, talvez pela idade que se avançava ou pela visão que se diminuía dia após dia.

Mas, ele nunca se desanimava; ele só queria viver, viver e viver!!!

Porém, a velhice de Aristides não foi tão tranqüila, pois tudo no mundo se acaba! A idade vai chegando e as pessoas vão sendo preparadas para desapegar-se dessa vida!

Aristides foi perdendo quase por completo a audição juntamente com a visão e teve de deixar de trabalhar, de andar pela cidade, de ir à igreja que ele tanto gostava tornando-se totalmente dependente da família e, até mesmo, de outras pessoas que o rodeavam.

E ele só queria enxergar!!!

Ele queria enxergar, e andar, e trabalhar… e enxergar, e andar, e trabalhar, e ir à igreja, e ver os amigos… mas não podia, parecia estar preso, acorrentado… então chorava.

Quantas vezes ouviam seus lamentos no meio das noites!

E assim ele foi passando seus dias!

E ele só queria enxergar, mas agora eram só recordações que restavam em sua mente!   E era só a dor das saudades que sufocavam o seu peito e corroíam seu coração!!!

Maria Conceição Castro da Silva é escritora

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