Opiniões

Rotina

Acordei cedo, como faço há alguns anos, fiz o café e fui cuidar de alguns afazeres. Ouvi os vizinhos fazendo o mesmo, com seus hábitos próprios. Ao longe, o zumbido de milhares de veículos em movimento, quase imperceptível no início, mas que foi aumentando aos poucos, indicava que a cidade também retomava sua rotina, a do dia e a de dois anos atrás: crianças voltando às aulas, os compromissos presenciais retomados, o movimento livre nas ruas, após as restrições impostas pela pandemia da Covid-19. Tudo em perfeita normalidade no plano físico da vida.

Mas, uma imensa tristeza que não saia da mente e do coração indicava que alguma coisa estava fora de lugar: as imagens publicadas nos últimos dias, da criança seguindo sozinha em direção ao desconhecido – a fronteira do país vizinho! Fugindo da guerra, de uma guerra que ela não compreende, que nem sabe bem o que é, mas que já destruiu a sua casa, a sua família, e está destroçando a sua cidade.

A mãe que a confiou a estranhos, não tem certeza se a salvou ou se a entregou a outra modalidade de algozes, chora. Mas tem de ficar para cuidar dos pais que ainda não puderam deixar o país agredido. A criança também chora indignada e nem mesmo olha para trás, mas segue, em passos trôpegos, em direção a um futuro incerto.

Tenho a impressão de que o café ficou mais amargo hoje. Mas é porque ainda me doem as expressões da senhora octogenária, pronunciadas diante da câmera do corajoso cinegrafista: “ainda bem que eles cuidam de nós…” referindo-se a voluntários que lhe servem uma sopa quente. E em seguida confessa: “mas eu gostaria mesmo era de voltar para casa…” E todos a ouvimos sabendo que a sua casa já não existe, que a sua cidade foi para os ares.

Ouvi que não nos devemos deixar levar pelo clima negativista do noticiário do dia a dia, especialmente das guerras, porque esse clima pode nos afetar psicologicamente. Mas como ficar apático diante de tanta desumanidade? Ainda que desligasse a TV, ainda que não olhasse os jornais, os fatos estão impregnados nas mentes, fazem parte da história, já não podem ser ignorados.

A humanidade vive em ambientes de guerras há milênios. A guerra, de certa forma, faz parte da rotina humana. Apenas nos últimos tempos se mantiveram distantes de alguns nós, mas jamais foram totalmente ignoradas.

Hoje temos a ventura e desventura de ver guerras ao vivo na televisão e pelas redes sociais, através de canais particulares. Elas nos causam dores profundas é fato. Quem não se lembra da criança fugindo nua do bombardeio aéreo na guerra do Vietnã? Mas talvez seja a oportunidade de acabarmos com elas. Vendo de perto os seus horrores ficamos encorajados a questionar as razões que levam autocratas como Vladimir Putin a destruir países livres como a Ucrânia.

E rejeitar previamente os políticos com tendência de colocar em risco as sociedades humanas. Ainda que haja pessoas que idolatrem esses líderes, que não hesitam em fazer guerra por motivos questionáveis, porque aquelas seguramente são minoria na sociedade civilizada.

Dr. José Borges

Advogado (Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca); especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil e em Direito Ambiental. Foi Procurador do Estado de São Paulo de 1989 a 2016 e Secretário de Negócios Jurídicos do Município de Franca. É membro da Academia Francana de Letras.

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