O soldado do Comando Vermelho

O Rio de Janeiro voltou a respirar pólvora.
Nas últimas operações no Complexo da Penha e do Alemão, a polícia subiu o morro e o Estado, por alguns dias, retomou o que lhe pertence: o controle territorial. Houve confronto, houve mortos — e era inevitável que houvesse. Falar em “operação letal” é quase um pleonasmo. Quando o poder público decide enfrentar facções fortemente armadas, o conflito é a única linguagem possível. E sim, é necessário. O preço da omissão tem sido muito maior: décadas de domínio paralelo, tribunais do crime e crianças crescendo sob a lei dos fuzis.
Entre os 115 criminosos mortos identificados, um terço deles não tinha o nome do pai no registro. O dado, que poderia ser lido apenas como estatístico, na verdade revela uma das origens mais profundas do problema: a desestruturação familiar.
A família como linha de frente
Facções como o Comando Vermelho não nascem do nada. Elas recrutam nas brechas do afeto e do abandono. Onde não há pai, o “dono do morro” – ou o “filho do dono”, como se autoproclama o traficante Oruam – se torna referência. Onde não há autoridade, a disciplina do crime organiza o caos. O menino sem exemplo pai em casa encontra, no tráfico, o que o lar não ofereceu: hierarquia, pertencimento, propósito — ainda que distorcido.
Um estudo do Ministério Público de São Paulo, de 2018, confirmam o padrão: apenas 17% dos adolescentes internados por crimes na Fundação Casa moravam com ambos os pais.
Isso não é coincidência, é diagnóstico. A ausência paterna não é um detalhe sociológico — é um gatilho. E o país insiste em tratar o tema como tabu, como se falar de família fosse coisa de conservador. Enquanto isso, a criminalidade avança ocupando o espaço que a família deixou vago.
O ciclo do abandono
É preciso dizer o que poucos têm coragem: a mãe solteira que não dá limites e o pai que abandona o filho produzem, ainda que sem querer, externalidades sociais que todos pagamos. O criminoso que rouba, o traficante que atira, o jovem que morre num beco — todos são frutos de uma sequência de imaturidades e irresponsabilidades individuais somadas à omissão coletiva.
Forma-se um ciclo. A menina, sexualizada cedo, engravida. O homem, covarde, desaparece. A criança cresce sem referência de autoridade, sem limites, sem norte. Na adolescência, encontra no tráfico o modelo de força e respeito que nunca viu em casa. Aí o roteiro se repete: ele engravida outra jovem, a abandona, e um novo órfão simbólico entra em cena. É uma engrenagem que se autoalimenta — e o crime sabe explorar isso como ninguém.
A cultura que educa para o crime
Enquanto o Estado recua, o crime ocupa até o imaginário. O funk e o trap, gêneros nascidos da periferia, ao invés de ferramentas de denúncia e superação, tornaram-se vitrines do crime organizado. A retórica do poder armado e da ostentação virou parte da identidade juvenil nas favelas.
Na canção “Fala Que a Tropa É Comando Vermelho”, MC Poze do Rodo canta:
“Na VK os menor te acerta /
Só soldado bom de guerra /
Que te mira e não te erra /
Só AKzão na favela.”
É o crime travestido de sucesso.
O garoto sem pai encontra nesses versos o modelo de masculinidade que faltou: o cara que impõe respeito pela arma, que conquista mulheres pelo status, que domina pela força. A música, nesse contexto, funciona como pedagogia invertida: ensina que o crime não é erro — é destino glorioso.
E, do outro lado, a “novinha” é a versão feminina dessa distorção. Nas letras, é mero objeto de prazer, um ser movido por estímulos — o carro, o cordão, o revólver. Não pensa, não escolhe; apenas reage. O resultado é previsível: sexualização precoce, gravidez, abandono, novo ciclo. Assim, o crime vai se reproduzindo, não só biologicamente, mas culturalmente.
As operações e a retomada do Estado
Diante disso, as operações policiais — como as recentes no Rio — não são apenas legítimas: são indispensáveis. Não há diálogo possível com quem faz da arma sua lei. Retomar o território das mãos do crime é pré-requisito para qualquer política social que venha depois. Sem ordem, não há escola que funcione nem assistência que chegue.
É preciso dizer sem rodeios: essas ações letais são o que resta quando o Estado chega tarde demais. Elas são o remédio amargo, mas necessário, para estancar uma infecção que vem de décadas. Criticar a polícia por agir é fechar os olhos para o que ela enfrenta — exércitos armados, milícias e facções que tratam a vida humana como estatística descartável.
O pós-operação exige continuidade. Não basta subir o morro, é preciso permanecer. O Estado precisa ser presença, não visita. Precisa oferecer aos meninos órfãos de pai — e de rumo — novas figuras de referência. Mentores, líderes comunitários, professores que imponham respeito, projetos que mostrem um caminho de autoridade sem violência. Sem isso, o território retomado vira terra de ninguém novamente.
Família, autoridade e cultura: o tripé esquecido
Resolver o problema das facções não é só questão de polícia, só de economia. É questão de estrutura. É preciso resgatar a família, reconstruir a autoridade e recuperar o valor simbólico da masculinidade responsável — algo que o crime sequestrou e a cultura popular distorceu.
Durante décadas, o discurso dominante preferiu ignorar essa raiz. A esquerda, em especial, tratou a família como instituição ultrapassada, um resquício de moral conservadora a ser desconstruído. Ao mesmo tempo, protegeu — em nome da “expressão cultural” — um arranjo estético e simbólico que alimenta a própria lógica do crime. Rappers e funkeiros faccionados hipersexualizam adolescentes, glorificam o poder das armas e transformam o tráfico em sinônimo de status. E o Estado, em vez de reagir, financia esse ambiente através de políticas que enxergam apenas a camada superficial do problema.
É o diagnóstico fácil: o crime como consequência da desigualdade. A solução, segundo essa cartilha, seria aumentar benefícios, transferir renda e “dar oportunidades”. Mas quem paga essa conta é a classe média — e o resultado, no fim, é uma sociedade cada vez mais dependente, e não mais estruturada. Não se combate o crime empobrecendo quem sustenta o país, menos ainda premiando arranjos familiares disfuncionais que reproduzem o problema.
O que falta é coragem política para dizer o óbvio: sem pai, sem autoridade e sem moral, não há futuro possível. O crime prospera exatamente onde esses três pilares ruíram. O soldado do Comando Vermelho não é apenas o produto da pobreza — é o produto do abandono. Do pai ausente, da mãe exausta, do Estado omisso e da cultura que glamouriza o erro. As operações no Rio mostram que é possível retomar o território. Mas se quisermos retomar também as mentes, será preciso reconstruir o sentido de família, autoridade e pertencimento.







