Inspirados

Almeidinha, o quasímodo

As vezes encontramos antigos personagens que passaram pelas nossas vidas. Há umas duas semanas, foi com surpresa que reencontrei um amigo, o Almeidinha.

Baixinho e orelhudo, tinha o apelido de Quasímodo, igual ao personagem do Vitor Hugo. Ganhou esse apelido por causa da animação da Disney e nunca mais perdeu. Ansioso, fumava feito chaminé.

Almeidinha, o Quasímodo, é muito bitolado. Lembro que ele dirigia com extrema atenção e tinha manias estranhas. Ele colocava o triângulo de emergência atrás do carro em estacionamento de 90 graus ‘para garantir’, ele dizia. Lâmpadas sobressalentes para o caso de um farol ou lanterna queimada? Duas, ‘porque a gente nunca sabe’.

Certa vez, nas antigas, com uma moça na porta do motel, ele deu ré no carro e, mesmo sob protestos da doce pequena, foi embora sob o argumento que o extintor estava vencido. Virou piada, seria o extintor vencido o de apagar eventual fogo no carro, ou o de apagar o fogo da moça? Vai saber, Quasímodo sempre foge do assunto.


Dizer ‘para garantir’, ‘sabe-se lá’, ‘porque a gente nunca sabe’ e ‘um homem precavido vale por dois’ eram mantras. Ele se gabava de nunca ter tomado multa ou sequer arranhado o carro.

Rimos de algumas dessas histórias e como não pode faltar nesses encontros extemporâneos, Almeidinha, o Quasímodo, passou às reclamações.

“Esse trânsito é selvagem”, disse, “eu estava numa rotatória e um motoqueiro me chamou de burro só por que não dei seta enquanto estava na minha faixa”. Ele ficou vermelho ao lembrar da ofensa. E continuou:

“Outro dia, o sinal ficou amarelo, eu parei. O cara que vinha atrás me chamou de retardado porque deixei o sinal ficar vermelho. É uma afronta ao cidadão que obedece às regras. Você me conhece, sabe como tomo cuidado com essas coisas”.

Ele se exaltou novamente, eu contemporizei e ele seguiu com as reclamações:

“Semana passada, naquela avenida perto de casa, eu estava na velocidade normal, a que está nas placas, quarenta por hora, um moleque emparelhou o carro, me chamou de parça, depois de tio, perguntou se eu estava bugado e mandou eu fazer o carro andar. Eu lá sou parça ou tio de alguém?”

Eu tentei mudar de assunto, mas ele não me ouvia, acendeu um cigarro, precisava desabafar.

“Espera que o pior está por vir. Estava no estacionamento do supermercado e enganado coloquei o carro na vaga de idosos. Você me conhece, eu dei ré e fui procurar outra vaga. Assim que saí, um rapaz com uma camionetona estacionou na vaga e saiu como se nada tivesse acontecido. Minha mulher me chamou de bobo, soltou um ‘a lá, bobão’ no estacionamento”.

Almeidinha, o Quasímodo, se transformou. Não fosse a Catedral de NotreDame já ter queimado em Paris, eu acharia que ele botaria fogo. Vestindo camiseta da firma, cabelos ralos e orelhas gigantescas o homem estava a ponto de ter ‘Um Dia de Fúria’.

Decretou, com as veias da testa saltadas, que a partir daquele dia não obedeceria às porcarias das leis de trânsito, que ia meter o pau no carro, e que se danassem todos. O homem estava brabo!

Ele não me deu ouvidos, estava revoltado. Quasímodo se autointitulou o mais novo malandro do trânsito.

Não levei fá naquilo tudo que ele disse, e eu precisava ir embora. Pedi desculpas, pois estava atrasado para um compromisso, e me despedi. Ele não disse nem tchau, só um ‘vô lá’. Personalidade forte misturada com falta de educação. O que custa um tchau? Ele entrou no carro e cantou pneu.

Tentei ligar algumas vezes durante essas duas semanas e ele não atendeu. Hoje, finalmente, ouvi um ‘alô’ com aquela voz inconfundível, rouca de tanto fumar.

“E aí, Almeidinha. Como andam as coisas?” – perguntei.

Escutei a profunda tragada no cigarro e ele respondeu seco:

“Bati a merda do carro e não tenho seguro”.

Coitado do Almeidinha.

Michel Pinto Costa

É Oficial de Promotoria do Ministério Público do Estado de São Paulo, em Franca, e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.

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