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Brasil é citado na ONU como caso de ‘risco de genocídio’ de índios

O Brasil foi citado pela primeira vez como um caso de risco de genocídio no Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), por causa de crimes contra populações indígenas.

Em relatório apresentado na 47ª sessão regular do conselho, Alice Wairimu Nderitu, conselheira especial para prevenção de genocídio, afirmou: “Na região das Américas, estou particularmente preocupada com a situação dos povos indígenas. No Brasil, Equador e outros países, peço aos governos que protejam as comunidades em risco e garantam a responsabilização pelos crimes cometidos”.

Nos termos adotados pelo Estatuto de Roma, documento que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI), genocídio implica condutas praticadas contra um grupo nacional, étnico e religioso com a finalidade de destruir no todo ou em parte esse grupo.

A citação do país pela conselheira especial para prevenção de genocídios deixa o governo brasileiro “oficialmente ciente” de que há atrocidades que precisam ser tratadas, segundo o advogado Paulo Lugon Arantes, que participa da reunião representando o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Se o país não reverter esse quadro, pode ficar exposto a outros mecanismos internacionais de responsabilização.

Além disso, a citação inédita ao Brasil pode reforçar o caso apresentado contra o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, no Tribunal Penal Internacional (TPI) pela Comissão Arns e pelo Cadhu (Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos), em 2019.

A representação acusa o presidente de incitar crimes contra a humanidade e genocídio de povos indígenas e comunidades tradicionais brasileiras, e é a que tem mais elementos para avançar ao exame preliminar da corte internacional, disse em entrevista à Folha no ano passado a juíza Sylvia Steiner, única brasileira a integrar até hoje o TPI.

Segundo Steiner, falando de forma ampla, “a destruição do meio ambiente, o desmonte dos órgãos de proteção das comunidades indígenas, a falta de punição aos atos de invasão a terras indígenas e ao assassinato de indígenas, e a ausência de políticas adequadas à proteção das comunidades indígenas em relação à pandemia, podem, em tese, justificar uma investigação”.

A advogada Juliana Vieira dos Santos, uma das autoras da representação no caso indígena, disse que a situação no Brasil se agravou muito desde que foi feita a denúncia, há três anos.

“Se antes falávamos em ‘tentativa’ de genocídio, hoje podemos falar que o crime já está sendo consumado e há várias provas robustas disso.”

As entidades afirmam que o presidente enfraqueceu a fiscalização e foi omisso em relação a crimes ambientais na Amazônia -entre as evidências incluídas na queixa estavam a instrução normativa nº 9 da Funai (que, segundo ativistas, permite a titularidade de terras em áreas indígenas protegidas pela legislação brasileira) e o veto de Bolsonaro a medidas de socorro durante a pandemia de coronavírus.

Durante a videoconferência da ONU, Arantes citou outros casos brasileiros que podem indicar risco de genocídio e “outras atrocidades”. Entre eles está o chamado Massacre de Caarapó, em 2016.

“Consiste em um ataque sistemático aos povos guarani e kaiowá e atinge, pelo menos, o limiar do crime contra a humanidade. Um total de 24 ataques, exaustivamente estudados, representam eventos não isolados, aleatórios ou desconectados. Em vez disso, constroem em conjunto táticas bem organizada”, afirmou o advogado, em nome do Cimi.

Os indigenístas também citaram como “igualmente grave” a situação dos povos ianomâmi e ye’kuana, “sistematicamente atacados por garimpeiros ilegais em seu território”. “O governo não pode ou não quer fazer cumprir uma ordem do Supremo Tribunal Federal para evacuar os invasores não indígenas”, afirmou a entidade.

Arantes, que atua em direito internacional e direitos humanos na ONU, diz que o Brasil tem desafios internos sistêmicos: “Discurso de ódio proferido no mais alto escalão, legislação interna em desacordo com os padrões internacionais, lentidão da Justiça e desmonte da política indígena são fatores que expõem o Brasil externamente e reforçam o envio de casos a Haia”.

Um dos argumentos da Comissão Arns e do Cadhu para fazer a representação na corte internacional é a de que a investigação dos casos não avança no Brasil. Em petição enviada à Justiça Federal de Dourados em maio, o Ministério Público Federal endossou essa versão.

Segundo o texto, “é injustificável o lento ritmo de tramitação de denúncia criminal do MPF contra os proprietários rurais autores de eventos de violência e morte contra indígenas em Caarapó, que ficou conhecido como Massacre de Caarapó, em junho de 2016”.

A Folha pediu entrevista ao Itamaraty sobre a citação pela relatora de prevenção ao genocídio, às 7h15 desta segunda, mas não havia recebido resposta até as 9h20 (horários do Brasil).

Entenda as chances de queixas contra Bolsonaro no tribunal penal internacional O Tribunal Penal Internacional (TPI), que julga casos como genocídio e crimes de guerra, recebeu nos últimos anos ao menos três pedidos de investigação sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro.

Entre os motivos estão a condução do governo no combate à pandemia de coronavírus e a representação feita pela Comissão Arns, referente aos povos indígenas.

Segundo especialistas, essa última é a que tem chances de avançar no TPI, corte que recebe de 500 a 900 requisições de investigação por ano, das quais mais de 90% são descartadas.

Poucas dezenas são submetidas a um exame preliminar que pode levar anos, antes ainda de ser aberta a investigação. A queixa relacionada aos indígenas brasileiros ainda não chegou a essa etapa de exame preliminar.

Dos casos que passam à análise preliminar, cerca de dez são efetivamente apurados por ano, dos quais só parte vira denúncia, é aceita pelo tribunal e se transforma em julgamento.

Esse funil tem o bico tão estreito porque a corte, criada em 2002, só aceita casos que atendam a pelo menos quatro condições:

  1. Tratem de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra ou de agressão na forma como estão definidos pelo Tratado de Roma (que criou o TPI) cometidos a partir de julho de 2002;
  2. Não haja possibilidade ou vontade do Estado que tem competência de investigar os crimes;
  3. Tenha gravidade que justifique uma investigação;
  4. Atenda aos interesses da Justiça (quando a investigação do caso não viola interesses da Justiça).

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