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Sobrevivente de poliomielite conta como experiência do passado pode proteger o futuro

Foi em 1968 que o Ministério da Saúde iniciou o monitoramento epidemiológico da poliomielite no Brasil. Naquele ano, houve 1.498 registros da doença em todo o território nacional, sendo 128 na região Norte. Entre eles, estava o caso de Andrea Silva Caselli, diagnosticada com paralisia infantil aos 10 meses de vida, quando ainda começava a dar seus primeiros passinhos em Macapá, no Amapá.

Uma foto preto e branco, tirada poucos dias antes do surgimento da doença, eternizou no tempo um dos raros momentos em que ela conseguiu ficar de pé, sozinha. Sorridente, a bebê está apoiada em uma cerca de madeira e parece se arriscar em uma caminhada lateral, com perninhas firmes que a levariam rumo aos braços do pai. 

Poucos dias depois do registro ser feito, a vida da família Silva mudaria de forma abrupta – além de Andrea, Edgard, seu irmão mais velho, na época com 2 anos e meio, foi acometido pela doença. Ele foi o primeiro a manifestar os sintomas da enfermidade que, ainda no início, pode ser facilmente confundida com um resfriado ou uma infecção gastrointestinal: provoca febre, mal-estar, dor de cabeça e de garganta, vômitos, diarreia ou constipação intestinal, e dores abdominais. 

Andrea, aos 10 meses de vida, ensaiando seus primeiros passinhos na cidade de Macapá (AP). Foto: Butantan/Governo de SP

“Minha mãe conta que um dia o Edgard acordou, deu três passos, caiu meio desfalecido e nunca mais andou”, lembra. Naquela altura, ele já apresentava sinais graves da doença, quando o poliovírus ataca o sistema nervoso e desenvolve uma paralisia flácida aguda permanente, ocasionada pela perda da força muscular e dos reflexos nos membros inferiores. A partir daí, iniciou-se uma corrida contra o tempo. Enquanto o irmão e os pais seguiram para Belém, no Pará, em busca de um atendimento hospitalar com melhores recursos, Andrea foi entregue aos cuidados de uma vizinha.

O diagnóstico positivo para pólio de Edgard veio depois de dois dias de muita especulação, em que foi levantada até a hipótese de um tumor cerebral. Após ficar quase completamente paralisado e lutar dia e noite para respirar, o menino, enfim, teve seu quadro estabilizado. O pai, então, retornou a Macapá para buscar a caçula, mas ainda no aeroporto teve uma surpresa: a vizinha, desesperada, veio lhe encontrar e contou que a pequena Andrea também tinha começado a apresentar os mesmos sintomas do irmão mais velho.

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O pai retornou imediatamente para Belém com a menina e levou-a às pressas para o mesmo hospital onde o primogênito estava internado. Em um primeiro momento, os médicos disseram que ela não tinha nada e que os pais estavam “sugestionados” pela condição de Edgard – o que se provou contrário pouco tempo depois. “Digo que, de certa forma, foi o meu irmão quem salvou a minha vida”, afirma. Andrea só voltaria a andar 2 anos depois daquela foto, com o auxílio de órtese, muletas e muita fisioterapia. 

Por terem um sistema imunológico ainda em desenvolvimento, as crianças menores de 5 anos são as mais vulneráveis ao poliovírus, que se aproveita dessa imaturidade para se replicar no organismo. Na maioria dos casos, a doença costuma ser branda: apenas 1% dos infectados desenvolve a chamada paralisia infantil, consequência mais grave da doença. 

Após o diagnóstico, Andrea passou por um período intenso de fisioterapias e voltou a andar com o auxílio de muletas. Foto: Butantan/Governo de SP

Crescendo com as sequelas da pólio

Passados quatro meses do diagnóstico, a família Silva desembarcava na cidade de São Paulo para dar início a um período intenso de terapias e cuidados na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) – na reabilitação pós-pólio, os dois primeiros anos são considerados fundamentais para frear a perda de mobilidade e das funções musculares. Por conta das fisioterapias, Edgard, que ficou tetraplégico e em um primeiro momento só permanecia deitado, conseguiu se sentar e recuperar algumas funções de braço. Já Andrea vive com uma disfunção nos membros inferiores. 

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Apesar das limitações, ela conta ter vivido uma infância bastante comum. “Me lembro de querer brincar com skate e minha mãe nunca me impedir. Pelo contrário, ela me deu uma luva para poder segurar na rabeira da bicicleta da minha irmã mais nova, que ia me puxando”, diverte-se. A percepção de que a paralisia poderia trazer algum tipo de limitação só veio na adolescência. Apesar de nunca se sentir isolada, os olhares e pré-julgamentos eram comuns. “A deficiência não me permitia fazer as coisas de uma determinada maneira, mas eu sabia que de outro jeito seria possível.”

Andrea e o marido durante viagem ao Rio de Janeiro. O casal está junto há 15 anos. Foto: Butantan/Governo de SP

A boa condição financeira da família também permitiu que Andrea transitasse por ambientes que, no passado, não eram tão fáceis de serem acessados por outras pessoas com deficiência. Aos 15 anos, por exemplo, ela foi estudar na Argentina, onde passou uma temporada de dois anos. De volta ao Brasil, cursou faculdade de Ciências Contábeis e foi funcionária do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo até se aposentar há alguns anos. As mesmas oportunidades foram concedidas ao irmão mais velho, que cursou Farmácia-Bioquímica na Universidade de São Paulo (USP). 

“Se por um lado a pólio trouxe uma porção de problemas, conseguimos contorná-los e ter uma vida funcional dentro da normalidade – não é uma vida normal, porque precisamos de uma porção de coisas que os outros não”, avalia. Para se locomover, Andrea utiliza muletas e um triciclo elétrico para PCD, e sua casa – onde mora com o marido e com o irmão mais velho – também é completamente adaptada, uma vez que é necessário ter espaços mais amplos para circulação. 

Andrea ao lado do irmão Edgard, que também foi vítima de pólio durante a infância. Foto: Butantan/Governo de SP

Relações espelho

Apesar de ter crescido na companhia de Edgard, que também convive com as sequelas da poliomielite, Andrea passou 37 anos da sua vida sem, de fato, expressar como se sentia em relação à doença, nem trocar experiências ou informações com outras pessoas com condições semelhantes à sua. “Todas essas questões que eu não pude resolver na minha adolescência, eu ia falar com quem?”, questiona. 

Mas tudo mudou em 2005, quando ela começou a frequentar o Setor de Investigação de Doenças Neuromusculares da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), responsável por conduzir estudos sobre a chamada Síndrome Pós-Pólio – condição que afeta 70% das pessoas que tiveram poliomielite na infância e, após um período de estabilização, desenvolveram sintomas de fraqueza e dores musculares, fadiga, problemas respiratórios, alterações do sono e intolerância ao frio.

Na sala de espera do ambulatório da Unifesp, Andrea conheceu Eliana Aquino. Moradora de Brasília, no Distrito Federal, ela contraiu poliomielite quando tinha 1 ano e 3 meses de vida, e perdeu a mobilidade da perna esquerda. Depois da consulta, as duas engataram em um papo que só foi terminar tarde de noite. “Quando nos demos conta, já tinha passado das 22h. Parecia que nos conhecíamos a vida toda e percebi que ela era como um espelho meu. Somos amigas até hoje”, completa. A experiência foi tão transformadora que Andrea passou a se engajar em prol dos direitos e necessidades das pessoas convivendo com as sequelas da poliomielite, por meio da Associação G-14 de Apoio aos Pacientes de Poliomielite e Síndrome Pós-Pólio.

O principal objetivo do grupo, composto por pacientes e médicos especialistas, é pensar problemas e soluções para uma melhor qualidade de vida dos sobreviventes da doença, difundindo a ideia de que eles ainda existem e necessitam de atenção. “A sociedade ainda não aprendeu que a pessoa com deficiência vê tudo diferente. Quando enxergamos um problema, geralmente pensamos em soluções mais curtas e práticas, porque naturalmente temos menos recursos, mas isso não é valorizado”, pontua.

Contando sua experiência de vida com as sequelas da poliomielite, em evento organizado pelo Museu da Vacina do Butantan. Foto: Butantan/Governo de SP

Próxima de completar 60 anos, Andrea diz estar em busca de sua melhor versão para envelhecer bem, uma vez que começou a apresentar alguns sinais de Síndrome Pós-Pólio. Recentemente, ela precisou fazer um tratamento fonoaudiológico para recuperar a voz, que estava bastante fraca. Mas assim como fazia na infância, ela seguiu um “jeitinho alternativo” para lidar com o problema: investiu em aulas de canto para fortalecer a laringe. Com isso, voltou a ouvir música, a se arriscar no piano e, também, a frequentar shows. “No fim das contas, o incômodo me trouxe muito mais coisas positivas que negativas.”

Quem tem medo da pólio?

Hoje, após 35 anos sem casos da doença no Brasil, Andrea observa: “Estou ouvindo cada vez menos aquela clássica pergunta: ‘Você teve pólio?’” Se por um lado é bom que as pessoas já não saibam identificar as sequelas da doença, também é mais provável que deixem de se preocupar com aquilo que não conseguem ver.

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Prova disso é a queda nas coberturas vacinas do país. Conhecido mundialmente por seu Programa Nacional de Imunização (PNI), que desde 1973 oferta de maneira universal e gratuita diversos imunobiológicos a toda a população, há 8 anos o Brasil vem enfrentando dificuldades em alcançar o índice de 95% de cobertura preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No caso da pólio, um leve aumento foi registrado entre os anos de 2022 e 2023, saltando de 77% para 85%. Atualmente, a marca está acima dos 86%

Assim como os casos da família Silva, muitos outros diagnósticos de poliomielite poderiam ter sido evitados por meio da vacinação. Em setembro de 1968, durante uma consulta pediátrica em Macapá, os pais de Andrea foram alertados de que a carteirinha de imunização das crianças não estava em dia. “Mas não havia vacina disponível na cidade e seria necessário pegar um avião até Belém. Como meu pai e minha mãe nunca tinham visto uma criança com o problema, não ficaram tensos. A ideia era deixar tudo em dia quando fôssemos para São Paulo, no final daquele ano, mas não deu tempo. Foi tarde demais”, lamenta.

Para aqueles que a vacina não chegou a tempo, como Andrea, optar de forma consciente por não se vacinar simplesmente não faz sentido. “Saber que existe um único caso a mais de poliomielite no mundo porque não houve acesso à vacina é uma dor enorme no coração”, desabafa. Na opinião da sobrevivente, também é preciso repensar com urgência as estratégias de vacinação, levando o tema para as escolas e aproximando-os das crianças, que são as mais vulneráveis no cenário atual de baixas coberturas. “A criança questiona, isso impacta a toda família. Precisamos preparar a próxima geração de mães e pais”, sugere.

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